O Direito e a Dignidade do ser humano no pensamento de São José Maria Escrivá

 Palestra proferida em 01/11/2021 no Congresso Brasileiro de Hagiologia


Por Ives Gandra da Silva Martins¹





O Bem-aventurado São José Maria Escrivá, cujo centenário se comemorou em 9 de janeiro de 2002, e cuja canonização se deu no  dia 6 de outubro do mesmo ano, veio recordar aos nossos tempos uma verdade velha como o Evangelho e, como o Evangelho, nova: a da grandeza divina do cotidiano – desse quotidiano sem nada de extraordinário em que Cristo quis passar a maior parte da sua vida –, mensagem válida para qualquer existência humana, por mais insignificante que pareça aos olhos dos homens, resgatando assim do esquecimento a vida e o ideal dos primeiros cristãos.

 

            A característica fundamental de sua percepção da vontade divina foi a de que há uma ordem no mundo querida por Deus e que, no livre arbítrio por Ele outorgado a todos os homens, podem eles escolher o caminho que lhes pareça melhor, desde que compreendam que Deus não nos deu o dom da vida para nada, mas para procurar e encontrar e seguir o plano que Ele se propôs ao chamar-nos à existência: sermos perfeitos como Ele é perfeito.

 

            Nessa ordem, aqueles que, no exercício da sua liberdade, optam, com a graça divina, por seguir seriamente a Deus no lugar em que se encontram, sem saírem dele, podem construir o mundo, fazendo-o melhor. Por isso, ao falar da crise dos homens sem fé, sem ideais e, muitas vezes, sem honra que dirigem os destinos do mundo, concluiu, em forma gráfica e lapidar, que estas crises mundiais “são crises de santos”. Se cada homem, em seus afazeres diários, cumprisse o plano divino para ele e buscasse a santidade na vida ordinária, nos seus deveres quotidianos, no exercício consciencioso da sua profissão, fatalmente não haveria crises, pois onde há santos, as crises se esboroam.

 

            Todos os homens são filhos de Deus, e compreender esta verdade fundamental é o que orienta os passos das pessoas para o bem. O mal decorre, fundamentalmente, da falta dessa perspectiva.

 

            Ora, incentivar cada ser humano a encontrar a chamada divina no meio das suas ocupações diárias, para exercê-las com a consciência de ser filho muito amado de Deus, é a essência do pensamento de São José Maria Escrivá e a razão de ser do Opus Dei. Ainda jovem – tinha apenas dezesseis anos – vislumbrou que Deus lhe pedia algo, mas só entendeu claramente esse pedido no dia 2 de outubro de 1928. Seus primeiros tempos de seminarista foram de busca incessante da missão que Deus lhe confiaria e, antecipando-se por especial providência divina ao carisma que receberia – e que consistiria em partir da ordem natural dos afazeres humanos para transformá-los em trampolim para a ordem divina –, decidiu complementar seus estudos de Filosofia e Teologia com o de Direito.

 

            Por que o Direito? O Direito é o instrumento de ordenação da sociedade – em outros países, usa-se a expressão “ordem jurídica” em vez de “regime jurídico” ou “sistema jurídico”--, e não é uma fantasia pensar que Deus o levou a penetrar nos meandros da Ciência Jurídica como outro meio de prepará-lo para a missão que lhe confiaria e que ainda desconhecia.

 

            Com efeito, os conhecimentos jurídicos vieram a ser fundamentais para que São José Maria  Escrivá configurasse, no plano civil e canônico, a Obra que fundara, uma obra sem precedentes anteriores e sem espaço no regime legal da Igreja então vigente que permitisse a sua aprovação. “Os senhores chegaram com cem anos de antecedência”, haviam de dizer a um dos seus filhos em Roma.

 

            E revelou-se um profundo conhecedor da referida Ciência, fazendo uso desses conhecimentos para ir perfilando o itinerário jurídico que terminou pela aprovação do Opus Dei como Prelazia pessoal em 1982.

            Apraz-me recordar aqui, de passagem, que São José Maria Escrivá defendeu a sua tese de doutoramento em direito civil, na Universidade Central de Madrid, escolhendo por tema uma das figuras mais curiosas da Igreja, a Abadessa de las Huelgas, que tinha jurisdição eclesiástica e civil sobre um vasto território. A perfeição jurídica da tese, a descrição histórica altamente documentada e o esforço por detectar essa integração dos dois direitos, o canônico e o civil, em verdade torna esta obra doutoral notável fonte de ensinamento jurídico e cristão, embora sobre um caso muito particular.

 


            O Bem-aventurado São José Maria Escrivá encarava o Direito como a pauta da ordem social projetada para a ordem individual, mas, principalmente, como reflexo da Ordem Sobrenatural. O Direito ofertou-lhe a base que lhe permitiu ordenar a estruturação de todos os aspectos do Opus Dei, que se compõe – numa estrutura aparentemente complexa, mas na realidade simples como são as obras de Deus – de homens e mulheres, solteiros ou casados, de qualquer profissão ou posição social, e de um pequeno número de sacerdotes em comparação com o número de leigos. Tudo, numa variedade imensa de atividades apostólicas – assistenciais, de promoção social, de ensino nos diversos níveis, etc, –, a maioria como fruto da iniciativa e responsabilidade de leigos, conscientes dos imperativos da sua vocação cristã como vocação de serviço, e tudo em perfeita ordem e harmonia, tendo em vista a elevação das realidades humanas diárias à ordem sobrenatural.

 

            Poder-se-ia resumir este primeiro aspecto da vida do Fundador do Opus Dei como demostração inequívoca de uma mente jurídica privilegiada e vocação efetiva para o Direito. A sua formação permitiu-lhe, com competência técnica e graça de Deus, formalizar o caminho jurídico, o “iter juris”, do Opus Dei, conformando-o na exata dimensão para que ofertasse, na Igreja, a imensa perspectiva da grandeza divina do humano, ou seja, o caminho da santidade na vida quotidiana.

 

            Por este prisma, é de compreender que, desde o primeiro momento, tenha batalhado intransigentemente pela perfeita adequação do direito particular do Opus Dei ao dom que recebera de Deus: não estava em suas mãos consentir em fórmula canônica alguma que  distorcesse esse carisma ou se prestasse a equívocos. Lutou, pois, até o fim da vida por obter, dentro das leis ordinárias da Igreja, uma solução jurídica que se ajustasse plenamente à inspiração divina recebida, sem a mutilar ou desfigurar. Essa solução, que deixou absolutamente perfilada antes de ser chamado por Deus, custou-lhe, no real sentido da expressão, “sangue, suor e lágrimas”. E Deus premiou o seu esforço por salvaguardar e garantir o carisma da Obra quando, sete anos após o seu falecimento, em 1982, o Papa João Paulo II, pela Constituição Apostólica “Ut sit”, erigiu o Opus Dei como Prelazia pessoal, uma figura jurídica nova prevista pelo Concílio Vaticano II para toda a Igreja, sancionada por Paulo VI no Decreto “Ecclesiae Sanctae” e acolhida mais tarde pelo novo Código de Direito Canônico de 1983. Por fim, Deus, afinal o Supremo Legislador, determinava inovadoramente os contornos peculiares de uma realidade vital, comprovada pela sua grande expansão pelos quatro cantos do mundo. A missão do Direito é plasmar a vida, não abafá-la – como sempre insistia São José Maria  Escrivá –, a fim de fortalecê-la e assegurar, neste caso, a perenidade do Opus Dei em Seu serviço e em serviço da Igreja e da humanidade. 

 

           Passemos agora a um segundo ponto. Dois jusnaturalistas que se pautaram pelas lições de São José Maria Escrivá (Izquierdo e Hervada) resumiram o seu ensinamento neste campo ao definirem o direito em três vocábulos: Direito é a “Ordem Social Justa”. Para São José Maria – repetimo-lo –, a vida vinha sempre antes, cabendo ao direito apenas dar forma às suas garantias.

 

            Este fino senso de justiça permitiram-lhe distinguir com clareza as marcantes distorções do positivismo jurídico e do farisaísmo legalista. Sendo o direito a expressão da Justiça, São José Maria  Escrivá viu sempre na norma jurídica, tanto na sociedade civil quanto na eclesiástica, a forma de amparo e acolhimento dos direitos naturais dos homens, individual e socialmente.

 

            Intimamente relacionado com este seu amor pela justiça, encontra-se o seu amor à liberdade e a conseqüente rejeição de qualquer tipo de tirania ou mentalidade de partido único. De rigor, nada agride tanto os direitos fundamentais dos homens, filhos de Deus, como a asfixiante mentalidade de “partido único” ou de “tirania das idéias ou, o que é pior, das ideologias”.

 

            E aqui chego a um aspecto relevante da figura de São  José Maria Escrivá, ou seja, a visão lúcida que tinha da dignidade do ser humano, fruto da sua profunda fé cristã. O homem é imagem e semelhança do Senhor, tendo sido elevado à condição de filho de Deus, em gesto de magnífico amor divino.

 

            Em “É Cristo que passa” declara:

 

“Esta é a grande ousadia da fé cristã: proclamar o valor e a dignidade da natureza humana e afirmar que, mediante a graça, que nos eleva à ordem sobrenatural, fomos criados para alcançar a dignidade de filhos de Deus." (É Cristo que passa, n. 133).

 

            Em que se fundamenta essa dignidade? Precisamente nesse dom gratuito da nossa filiação divina, filiação que não há riqueza terrestre que a possa superar.

 

            São José Maria  Escrivá tem, portanto, uma idéia elevadíssima do homem. Explica:

“A fé cristã leva-nos a ver o mundo como criação do Senhor, a apreciar, portanto, tudo o que é nobre e belo, a reconhecer a dignidade de cada pessoa, feita à imagem de Deus, e a admirar o dom especialíssimo da liberdade, que nos faz donos dos nossos próprios atos e nos permite – com a graça do céu – construir o nosso destino eterno"(EC 99). 

 




            Esta dignidade deve ser respeitada por todos os seres humanos, como decorrência da graça por eles recebida.  São José Maria  Escrivá sempre teve a preocupação de ensinar aos seus filhos, a todos os cristãos e a todos os seres humanos, que vejam no próximo a essência da sua dignidade, para respeitá-la como Deus a respeita. O “outro” deve ser respeitado por ter a dignidade própria da raça dos filhos de Deus.

 

            Escreve em outro trecho:

 

"As almas não podem ser tratadas em massa! Não é lícito ofender a dignidade humana e a dignidade dos filhos de Deus deixando de atender pessoalmente a cada um com a humildade de quem se sabe instrumento e veículo do amor de Cristo: porque cada alma é um tesouro maravilhoso; cada homem é único, insubstituível. Cada um vale todo o sangue de Cristo". (EC 80).

 

            Em outras palavras, não é possível massificar, coletivizar, despersonalizar o próprio homem. Como dizia Hervada (estudo em “A personalidade de Monsenhor José Maria Escrivá”) não coletivizar é uma decisão de justiça. É uma forma de se fazer justiça com cada ser humano, respeitando a sua individualidade, a sua personalidade, a sua liberdade. Não há conversão em massa, não há conversão verdadeira sem que esteja alicerçada na conversão individual, com respeito à diginidade própria de cada pessoa, que recebeu individualmente a redenção do sangue derramado no Calvário.

 

            Reconhecer a dignidade do ser humano leva-nos à plena consciência da igualdade radical de todos os homens, outro aspecto marcante das convicções de São José Maria Escrivá.

 

            E o vocábulo “radical” é utilizado aqui na densidade da sua origem, o que vale dizer é a “raiz” da igualdade. Todos os homens são iguais porque são “filhos de Deus” e Deus não faz distinção entre os seus filhos.

 

            Diz São José Maria Escrivá:

"Só há uma raça na terra: a raça dos filhos de Deus" (EC 13).

E repetia, em muitas ocasiões:

"Diante de Deus, como homens, como criaturas, todos somos iguais".

 

            Não há diferenças entre as raças e os sexos. Fala sobre a dignidade da mulher:

 

“Num plano essencial – que deve ser objeto de reconhecimento jurídico, tanto no direito civil como no eclesiástico –, aí, sim, pode-se falar de igualdade de direitos, porque a mulher tem, exatamente como o homem, a dignidade de pessoa e de filha de Deus" (Questões atuais do Cristianismo, n. 87),

 

            E sobre as discriminações raciais, respondendo a uma pergunta sobre a situação nos EUA:

 

"Ante o problema racial dos Estados Unidos, cada membro da Obra terá presente os ensinamentos claros da doutrina cristã sobre a igualdade de todos os homens e a injustiça de qualquer discriminação [...].

Defenderá, portanto, os legítimos direitos de todos os cidadãos e opor-se-á a qualquer  situação ou projeto discriminatório. Terá em conta, além disso, que um cidadão não deve contentar-se com respeitar os direitos dos outros homens, mas precisa ver – em todos – irmãos a quem deve um amor sincero e um serviço desinteressado" (Questões atuais do Cristianismo, n. 29),

 

concluindo a sua visão de sólida justiça e imensa misericórdia de acordo com as características próprias de cada pessoa:

 

"Deus, pela sua justiça e pela sua misericórdia – infinitas e perfeitas –, trata com o mesmo amor, e de modo desigual, os filhos desiguais. Por isso, igualdade não significa medir a todos com a mesma bitola" (Sulco, n. 601).

 

            Vincula, pois, a dignidade do ser humano a uma questão de justiça e a justiça a uma questão de igualdade – todos, todos, todos os seres humanos tendo direito, por justiça, a receber o tratamento digno de filhos de Deus, sem diferenças, distinções, privilégios, visto que todos os homens sem exceção foram redimidos por Cristo e merecem dos outros tratamento condizente com esse “status” próprio de filhos do Rei Supremo.

 

            À evidência, esta monolítica vinculação entre a dignidade, igualdade e justiça leva-me a uma outra consideração de não menor relevância, qual seja a do respeito aos direitos fundamentais do ser humano.

 

            Tem-se, entre os jusfilósofos, que o momento maior do Direito Contemporâneo foi a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em que, pela primeira vez, de forma global, as Nações Unidas reconheceram que há direitos que estão acima das regulações humanas e que ao Estado cabe apenas reconhecê-las. São os direitos fundamentais de todos os seres humanos. Dez de dezembro de 1948 marca para todos os países o reconhecimento da prevalência dos direitos fundamentais do homem sobre o direito dos legisladores, que devem, ao reconhecê-los, apenas regular as suas garantias .

 

            O Fundador do Opus Dei sempre teve muito claras as conseqüências que resultam dessa dignidade e igualdade nos direitos essenciais do ser humano.

 

            Diz:

 

“Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos  – conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico pluralismo – devem identificar-se no mesmo empenho em servir a humanidade. De outro modo, o seu  cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens" (EC 167).

 




            O direito à vida, à liberdade, à existência digna, ao salário justo, à própria imagem e muitos outros foram reiteradamente defendidos por São José Maria Escrivá, que especificava e defendia tal dimensão do cristão e do homem, colocando-se permanentemente como defensor desse conjunto de direitos essenciais.

 

            Lê-se, entre os seus escritos:

"Temos obrigação de defender a liberdade pessoal de todos, sabendo que foi Jesus Cristo quem nos adquiriu essa liberdade (Gal IV, 31) [...] Devemos difundir também a verdade, porque veritas liberabit vos (Jo VIII, 32), a verdade nos liberta, ao passo que a ignorância escraviza. Cumpre-nos defender o direito, que todos os homens têm, de viver, de possuir o necessário para desenvolver uma existência digna, de trabalhar e descansar, de escolher o seu estado, de formar um lar, de trazer filhos ao mundo dentro do matrimônio e de poder educá-los, de  passar serenamente o tempo da doença ou da velhice, de ter acesso à cultura, de associar-se com os demais cidadãos para atingir fins lícitos, e, em primeiro lugar, de conhecer e amar a Deus com plena liberdade, porque a consciência – se for reta – descobrirá pegadas do Criador em todas as coisas" (AD 171).

           

            No que diz respeito, concretamente à liberdade religiosa, ouvi-o dizer aqui em São Paulo, perante um público vasto, que daria a vida para defender o direito de certa esposa, à época evangélica, de ter um credo diferente do de seu marido, sem menoscabo de ele, sacerdote de Jesus Cristo, estar convencido de que a plena verdade estava na fé católica, apostólica e romana.

 

            Por todas estas razões, sentia-se também seguro, tranqüilo e incisivo ao dizer:

 

"O Opus Dei não tem nenhuma orientação econômica ou política, nem na Espanha nem em nenhum outro lugar. É certo que, impelidos pela doutrina de Cristo, seus membros defendem sempre a liberdade pessoal e o direito que todos os homens têm de viver e trabalhar, de ser amparados na doença e na velhice, de constituir um lar e trazer filhos ao mundo, de educar esses filhos de acordo com o talento de cada um, e de receber um tratamento digno de homens e de cidadãos. Mas a Obra não lhes propõe nenhum caminho específico, nem econômico, nem politico, nem cultural. Cada um dos seus membros tem plena liberdade para pensar e agir nessas matérias como melhor lhe parecer. Em todos os assuntos temporais, os sócios da Obra são libérrimos: no Opus Dei cabem pessoas de todas as tendências políticas, culturais, sociais e econômicas que a consciência cristã possa admitir" (QAC 48).

 

            Como se percebe claramente, o respeito externado aos direitos humanos foi um atributo constante e visível da sua personalidade.

 

            Volto agora a falar da justiça, a que Cícero, no primeiro ataque advocatício moderno aos positivistas  – captado pela doutrina romana – se referiu como podendo opor-se à norma escrita de conteúdo ético (summum ius, summa injuria), pois o excesso de formalismo pode levar a grandes injustiças e, na doutrina católica que São José Maria  Escrivá sublinhou constantemente, deve ser necessariamente complementado pela caridade, que, de rigor, é o “ágape cristão”.

 

            Um pensamento do seu livro Sulco mostra bem o tempero que oferta ao dizer:

"Ao resolveres os assuntos, procura nunca exagerar a justiça ao ponto de esqueceres a caridade" (Sulco n. 973).

 

            É de justiça reconhecer ao próximo a dignidade a que tem direito, mas a justiça pede necessariamente amor, como manifestação e transbordar do amor de Deus por todos os homens, todos eles filhos seus por igual. Justiça, dignidade e caridade cristã formam uma unidade indissolúvel, que o Fundador do Opus Dei realça ao dizer:

 

“Vivendo a caridade – o Amor –, vivem-se todas as virtudes humanas e sobrenaturais do cristão, que formam uma unidade e que não se podem reduzir a enumerações exaustivas. A caridade exige que se viva a justiça, a solidariedade, a "'responsabilidade familiar, a alegria, a castidade, a amizade...” (Questões atuais do Cristianismo, n. 62).

 

            Idêntica reflexão em forma diversa se lê neste outro ponto de Forja:

 

“Se se faz justiça a seco, é possível que as pessoas se sintam feridas.

– Portanto, deves agir sempre por amor a Deus, que a essa justiça acrescentará o bálsamo do amor ao próximo; e que purifica e limpa o amor terreno. Quando Deus está de permeio, tudo se sobrenaturaliza” (Forja n. 502).

 

            É importante ter consciência de como – para São José Maria Escrivá – a justiça e a dignidade humana, a partir da caridade, conformam a verdadeira dimensão do cristão. Lembra que:

 

“Nunca me cansarei de me referir à justiça, mas aqui só podemos apontar alguns dos seus aspectos, sem perder de vista qual é a finalidade de todas estas reflexões: edificar uma vida interior real e autêntica sobre os alicerces profundos das virtudes humanas. Justiça é dar a cada um o que é seu. Mas eu acrescentaria que isso não basta. Por muito que cada um mereça, é preciso dar-lhe mais, porque cada alma é uma obra-prima de Deus.

A melhor caridade consiste em exceder-se generosamente na justiça. É uma caridade que costuma passar desapercebida, mas que é fecunda no Céu e na terra” ( AD 83).

 

            À evidência, na reflexão e compreensão desta maravilhosa dimensão da grandeza divina do humano, a “monumentalidade” da vida corrente, a partir da certeza da filiação suprema, tem que se manifestar em obras, como São José Maria Escrivá diz com incisividade:

 

“Se o cristão não ama com obras, fracassa como cristão, que é fracassar também como pessoa. Não podemos pensar nos outros homens como se fossem números ou degraus para podermos subir; ou massa para ser exaltada ou humilhada, adulada ou desprezada, conforme os casos. Devemos pensar nos outros – em primeiro lugar nos que estão ao nosso lado – como verdadeiros filhos de Deus que são, com toda a dignidade desse título maravilhoso. Com os filhos de Deus temos que nos comportar como filhos de Deus: o nosso amor deve ser sacrificado, diário, feito de mil detalhes de compreensão, de sacrifício silencioso, de dedicação que não se percebe” (EC 36) .

 

            As obras, porém, não podem ser, apenas iniciativas de mero assistencialismo, mas de promoção do ser humano. Diz o Bem-aventurado São José Maria Escrivá:

 

“A caridade cristã não se limita a socorrer o necessitado de bens econômicos; dirige-se, antes de tudo, a respeitar e compreender cada indivíduo enquanto tal, com a sua dignidade intrínseca de homem e de filho de Deus” (EC 36 ??) ,

 

            E, mais adiante, num trecho longo que faço questão de reproduzir, esclarece:

              “Convencei-vos de que só com a justiça não resolvereis nunca os grandes problemas da humanidade. Quando se faz justiça a seco, não vos admireis de que a gente se sinta magoada: pede muito mais a dignidade do homem, que é filho de Deus. A caridade tem que ir dentro e ao lado, porque tudo dulcifica, tudo deifica: Deus é amor (I Jo IV, 16).

              [...]Para chegarmos da justiça estrita à abundância de caridade, temos todo um trajeto a percorrer. E não são muitos os que perseveram até o fim. Alguns se conformam com aproximar-se dos umbrais: prescindem da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, que qualificam como caridade, sem perceber que isso é apenas uma parte pequena do que estão obrigados a fazer. E mostram-se muito satisfeitos de si mesmos, como o fariseu que pensava ter preenchido a medida da lei porque jejuava dois dias por semana e pagava o dízimo de tudo o que possuía (Cfr. Lc XVIII, 12).

              A caridade – que é como um generoso exorbitar-se da justiça – exige primeiro o cumprimento do dever. Começa-se pelo que é justo, continua-se pelo que é mais equitativo... Mas, para amar, requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita afabilidade; numa palavra, é preciso seguir o conselho do Apóstolo: Levai uns as cargas dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo (Gal VI, 2). Então, sim, já se vive plenamente a caridade, já se realiza o preceito de Jesus.

              Para mim, não existe exemplo mais claro dessa união prática entre a justiça e a caridade que o comportamento das mães. Amam com o mesmo carinho todos os filhos e precisamente esse amor as leva a tratá-los de modo diferente –com uma justiça desigual – já que cada um é diferente dos outros. Pois bem, também com os nossos semelhantes a caridade aperfeiçoa e completa a justiça, porque nos move a conduzir-nos de maneira desigual com os desiguais, adaptando-nos às suas circunstâncias concretas, para comunicar alegria a quem está triste, ciência a quem não possui formação, afeto a quem se sente só... A justiça estabelece que se dê a cada um o que é seu, o que não significa dar a todos o mesmo. O igualitarismo utópico é fonte das maiores injustiças.

              Para agirmos sempre assim – como essas mães boas –, precisamos esquecer-nos de nós mesmos, não aspirar a nenhum espírito de senhorio que não o de servir os outros, como Jesus Cristo, que pregava: O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir (Mt XX, 28). Isso requer a inteireza de submeter a vontade própria ao modelo divino, de trabalhar por todos, de lutar pela felicidade eterna e pelo bem estar dos outros. Não conheço melhor caminho para sermos justos que o de uma vida de entrega e de serviço" (AD 172 e 173).

 




            Chegou o momento de concluir estas considerações – bem limitadas – sobre o Fundador do Opus Dei, em grande parte baseadas nos seus próprios escritos, relembrando que para ele a vida antecedia o direito, e este devia conformar-se com ela, perfilando a realidade do homem e da sociedade e a sua legítima liberdade, assim como jamais admitindo um direito capaz de abafar, mutilar ou ferir a dignidade humana, maravilhoso atributo dos filhos da raça de Deus. Justiça e caridade, liberdade e igualdade, dignidade e filiação divina foram as tônicas dominantes da sua personalidade, realidades e virtudes que, antes de se extravasarem para todos os âmbitos da sociedade – mesmo os aparentemente menos influentes, como o das profissões modestas, ou o das atividades operárias e do campo – se cristalizaram no meio universitário, sendo inúmeros os Centros e Residências universitárias, as Escolas superiores e Universidades que se criaram sob a inspiração e o incentivo de São José Maria  Escrivá nas mais diversas nações dos cinco continentes.

 

            E neste Congresso da Academia Brasileira de Hagiologia, e neste ato acadêmico em homenagem a Sua Santidade, termino com umas palavras suas sobre a missão da Universidade:

 

“Se por política se entende interessar-se e trabalhar em favor da paz, da justiça social, da liberdade de todos, então todos na Universidade, como corporação, têm a obrigação de sentir esses ideais e de fomentar a preocupação por resolver os grandes problemas da vida humana.

Se, em vez disso, por política se entende a solução concreta de um determinado problema, a par de outras soluções possíveis e legítimas, em confronto com os que sustentam o contrário, penso que não é a Universidade a instância que deve pronunciar-se a esse respeito.

A Universidade é o lugar onde as pessoas se preparam para dar soluções a esses problemas; é a casa comum, lugar de estudo e de amizade; lugar onde devem conviver em paz pessoas de diversas tendências que, em cada momento, sejam expressão do legítimo pluralismo que existe na sociedade" (Questões atuais do Cristianismo, n. 76).

 

            E foi este pluralismo nos estudos universitários – e não só aí, mas em todas as demais atividades humanas deixadas por Deus à livre opinião e opção dos homens – a doutrina que São José Maria  Escrivá viveu e pregou até à exaustão, como homem de fé e de mentalidade orientada para a justiça, baseada na conciência da sua filiação divina, um mistério extraordinário que agradecia  todos os dias.

 

            E a partir dessa formidável percepção, ensinou a todos os homens a fazerem da sua vida uma vida de serviço aos demais. Só assim é possível que cada qual se comporte como verdadeiro filho de Deus, que comece por respeitar e dar valor à sua própria dignidade, e depois reconheça essa mesma dignidade em todos os seus semelhantes, tratando-os com respeito, justiça e fina caridade. Esta é a simples e fantástica lição de São José Maria Escrivá para a humanidade de todos os tempos.


¹ Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior de Guerra - ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs-Paraná e RS, e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO - SP; ex-Presidente da Academia Paulista de Letras-APL e do Instituto dos Advogados de São Paulo-IASP. Membro das Academias Brasileira de Filosofia, Paulista de Letras Jurídicas e Brasileira de Letras Jurídicas. 

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