Autoconhecimento e espiritualidade: Uma trilha no caminho da santidade
Palestra proferida em 01/11/2021 no Congresso Brasileiro de Hagiologia
Por Pedro Bezerra de Araújo
Paz
e Bem!
Quero
saudar meus colegas confrades e confreiras da ABRHAGI e todos e todas que estão
sintonizados com este nosso Congresso Brasileiro de Hagiologia.
Sejam
bem-vindos!
Oração inicial
Senhor, que eu saiba primeiro me encontrar, antes de me doar.
Que eu possa me auscultar, com firmeza, sinceridade e humildade e aprender
quando devo dizer sim e quando devo dizer não, de acordo com minha real vontade
e determinação. Nos erros, que eu cometo, que possa me olhar com todo amor e
compaixão, encontrar a razão deles e me corrigir, pois tenho certeza de que com
a Vossa ajuda e a minha escolha, eu posso cada dia ser melhor. Que eu busque os
dons e qualidades que me outorgastes e os desenvolva para o meu bem, para o bem
de meus irmãos e para glória de Deus. Livrai-me, Senhor, das coisas obscuras; que eu
aprenda a controlar os pensamentos obtusos, que não combinam com a minha fé,
com a santidade que almejo e, muito menos, com os Vossos mandamentos. Que eu cultive a auto gratidão e saiba
agradecer-Vos, Senhor.
Vale a pena ser santo?
Você alguma vez já se fez estas perguntas, seriamente:
Quem sou eu? Qual o meu referencial de vida? O meu pensar, o
meu querer e o meu agir têm coerência, no meu dia-a-dia?
Introdução
“Conhece-te, aceita-te,
supera-te.” (Sto. Agostinho)
A temática, que
pretendemos desenvolver, como apenas um singelo ensaio, e um convite à
reflexão, nada mais que isso, é vasta e tem suas complexidades.
Iniciamos com algumas ideias
que vão nortear nossa palestra, alguns conceitos para adentramos em
considerações outras e pertinentes:
1) O que pensamos quando falamos de santidade?
A santidade é um caminho dinâmico, numa direção certa e com
um foco definido: seguimento de Jesus Cristo. Este caminho se dá em nossos
territórios humanos e passa, por certo, indelevelmente, pela contingência de
nosso ser, em meio a erros e acertos, a dúvidas e confianças, alegrias e
tristezas, bem como há momentos de luzes e de trevas e pode haver até mesmo alguns
de desespero.
A santidade é chamado universal pra os filhos de Deus: “em
Jesus Cristo, Deus nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos”[1]
Há muitas pessoas, que desejam ser santas, porém, esquecem-se
de que precisam primeiro ser humanas.
2) O que entendemos, quando falamos ‘espiritualidade?
A espiritualidade não é uma ‘fuga sui’. É o jeito como cada
pessoa vive, é um estilo de vida. Podemos dizer que espiritualidade é a maneira
como a criatura pensante se relaciona consigo mesmo, com o outro, com o cosmos
e com Deus.
A espiritualidade é, pois, inerente à vida, integra o holismo
da vida e a totalidade da pessoa.
No caso da espiritualidade cristã, trata-se de experiência
integral de um Deus pessoal, revelado, plenamente, na pessoa de Seu Filho Jesus
Cristo: inspirações, convicções que movem o cristão a uma visão e atitude,
alicerçada na dinâmica do amor, que se origina na Trindade, fonte de toda a
vida e de todo o bem, seu fundamento e sua essência.
Eu me relaciono, logo
existo
Uma pequena história
Conta Thich Nhat Hann que um monge decidiu retirar-se para
meditar sozinho. Longe de seu mosteiro, ele toma um barco e vai até o meio do
lago, fecha os olhos e começa a meditar. Depois de algumas horas de silêncio
imperturbável, ele de repente sente o golpe de outro barco batendo no dele. Com
os olhos ainda fechados, ele sente a raiva crescer e, quando abre os olhos,
está pronto para gritar com o barqueiro, que ousou atrapalhar sua meditação.
Mas, quando ele abriu os olhos, viu que era um barco vazio, não amarrado, que
flutuava no meio do lago. Nesse momento, o monge entende que a raiva está
dentro dele; ele simplesmente precisa da batida de um objeto externo para
provocá-lo. Depois disso, sempre que conhece alguém que irrita ou provoca sua raiva,
ele se lembra: a outra pessoa não passa de um barco vazio. A raiva está dentro
de mim.
Questionamentos
Você já se deu conta de que, na sua vida,
... Tudo fica sem gosto e quase você não
avança, quando você está com raiva ou magoado com alguém, chateado com alguma
coisa?
... Você dispende uma enormidade de energia
para realizar suas tarefas, quando você fica triste, preocupado ou ansioso?
... Quando você está magoado, triste,
angustiado, preocupado, chateado, tudo parece se arrastar, cobrando de você um
gasto excessivo de energias para você retornar à sua normalidade?
“Ora bem, como é que eu sou? Geralmente fugimos a essa pergunta, mas, se
tivéssemos que responder a ela, provavelmente não seríamos capazes de dar uma
resposta satisfatória. Diríamos talvez meia dúzia de coisas vagas, misturando autoelogios
disfarçados com o reconhecimento de algum defeito inofensivo. Nada de sólido e
realmente veraz. Porque a verdade é que nos desconhecemos. Tanto é assim que,
diante de algo objetivo, como por exemplo a gravação de nossa voz, uma
caricatura que nos fazem e até uma fotografia que nos apanhou desprevenidos,
surpreendemo-nos. Esse sou eu?”[2]
Somos seres de
relacionamento
Bela teoria, que impulsiona jornais e muitas obras
literárias. No entanto, vivemos, na maioria das vezes, em choques como placas
tectônicas, as quais, ao se encontrarem, produzem nada mais que destruições.
Tais choques geram terremotos e provocam tsunamis. Há, no entanto, outras
modalidades de impactos, como, por exemplo, o atrito, que nos faz caminhar, que
permite o carro controlar seu movimento. Nas páginas da história, lê-se que
nossos ancestrais produziam o fogo, através do atrito de duas superfícies.
No nosso dia-a-dia, o impacto primeiro acontece dentro de
cada um de nós e, a partir daí, eu esparzo suas consequências para o entorno,
estendo-me para o mundo. E nele vai a minha visão que edifica o ‘meu mundo’, no
qual eu me movo, insiro-me e interajo com o mundo. Pode ser uma bolha, uma
montanha, uma planície, um continente ou uma ilha. Um mar ou um pântano. O
certo é que o que eu construo em mim salta para dentro da vida.
Eis a realidade da história do monge, da nossa história
acima.
A espiritualidade não é um anacoluto existencial. Ela está
integrada ao que somos. Daí que é fundamental, mesmo imperioso, estabelecer um
relacionamento comigo mesmo.
O próprio Deus, ser absoluto, que poderia ser solidão
suprema, Ele se nos revelou, fazendo-se inteligível como relação trinitária:
Pai, Filho e Espírito.[3]
Pessoa humana, somos, fundamentalmente, seres de
relacionamento. Mesmo se nos isolarmos numa ilha ou nos refugiarmos no deserto,
não deixaremos de nos relacionar. Tentar fechar-se beira fenômenos patológicos.
A espiritualidade, compreensão e significado da vida, que
deve conjugar, harmônica e equilibradamente, o corpo, a psicologia, a
experiência de Deus e o compromisso na história, firma-se na solidez do
encontro.
E para que haja este relacionamento saudável, com sensatez,
impõe-se o autoconhecimento. Não é por acaso que o segundo maior mandamento nos
diz “amar ao próximo ‘COMO A SI MESMO’”. Amar é um ato transitivo, cuja
amplitude de conceitos varre atenção, cuidado, consideração, respeito, ética,
tolerância, etc.
Amar contempla espiritualidade e determina santidade.
Mas, qual é o ponto de partida?
O ponto de partida é
de um ilustre ser ignoto de si mesmo:
Eis algumas perguntas, no nosso espelho, olho no olho,
cujas respostas nos expõem a nós próprios:
...
Como eu me defino?
...
Que tipo de pessoa eu sou?
...
Eu sou uma boa pessoa?
...
Qual o sentido de meu viver?
...
Como eu cuido de mim?
... Da minha saúde?
... Do meu corpo?
...
Eu me respeito? Em que situações?
...
Como está a minha conexão com o mundo ao meu redor?
...
Qual diferença eu causo no ambiente e nas pessoas que me circundam?
...
Como eu posso viver a minha vida da melhor maneira possível?
...
Sou uma espiritualidade consciente?
...
Estou perseguindo uma santidade livre?
... Afinal, quem, de fato, sou eu?
Autogênese
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome,
essa coisa é o que somos”.[4]
Nós somos múltiplos
em nossa unidade.
E devemos estabelecer uma
interação com nossos elementos orquestrais. Na nossa caminhada, não há
neutralidade e a configuração é de cada
um de nós. O dia não espera,
a noite não dura nem mais um minuto.
O protagonismo da nossa vida
nasce conosco, com cada um de nós, e dirige nossa jornada, nossa
espiritualidade, durante todo o processo vital.
Os fundamentos de nossa humanidade personalizada confundem-se
com nossos valores e nos dão o direcionamento da espiritualidade.
As dimensões que se alojam no meu interior projetam a
finalidade de meus anseios e de meus procedimentos.
A
trilha da realização da santidade está ligada diretamente às atitudes
congruentes com o valor interior que cada pessoa alberga.
Santa
Teresa de Jesus já dizia: “É desatino pensar que havemos de entrar no céu sem
primeiro entrar em nós mesmos, a fim de conhecer e considerar nossa miséria.”
Sem a cognoscibilidade de meus valores torna-se impossível
analisar sua dinâmica
e sua conformidade com a finalidade que almejo.
Então,
a santidade, que conceituo na minha mente, pode
estar sendo incompatível com o meu ‘estar-no-mundo’.
Descoberta
do EU Holístico
Uma profunda espiritualidade
nos abre para o mundo, para os outros. Faz-nos perceber-nos habitantes do
universo, com uma multidão de pessoas e não nos fecharmos na paranoia intimista
do ‘meu eu’ ou na fixidez de meus medos e mitos.
A vida espiritual encarna um
processo de libertação do ego, do “euzinho querido”, dos seus temores,
rancores, interesses, angústias e outros.
O dilema de Sófocles “decifra-me ou devoro-te” soa-nos também
como um alerta: se tu não me decifrares, não há como crescer em consciência,
não poderei evoluir e te devorarei, transformando-te em zumbi escravo,
destruindo a tua humanidade.
Conhecer a si mesmo demanda coragem, determinação e,
sobretudo, humildade. Imergir dentro de nosso oceano de medos e inquietações,
descortinar qualidades e ver nosso lado escuro: nossas limitações, nossos
medos, nosso lado desonesto, nosso viés hipócrita, nossa agressividade, nossa
raiva, nossa inveja, nossa covardia, enfim tudo aquilo que o ser humano
apresenta como características bem humanas.
O autoconhecimento é que vai nos fornecer condições de
aprender a cuidar de nós mesmos.
Quem não se conhece será sempre refém de suas emoções,
de suas desconhecidas crenças limitantes e de suas percepções distorcidas.
Seu auto desconhecimento será nada mais que seu cárcere. O salmista já nos dizia: “Sei que sou pecador, desde que nasci. Minha mãe me concebeu em pecado” (Sl 51,5)
Todos nós temos um lado
sombrio, ninguém escapa. Ninguém é perfeito, ninguém é 100% “bonzinho”. Apenas
os hipócritas pensam que o são e os ingênuos pensam que existe alguém assim.
A santidade não passa ao
largo da nossa humanidade. É com ela e nela que nos descobrimos imagem de Deus,
como afirma Guilherme de St. Thierry: “Conhece-te a ti mesmo, porque és minha
imagem, e assim hás de conhecer a mim, de quem és a imagem. Em ti tu me
encontrarás”[5].
Sim, conhecer-se é dolorido; muitos não querem se conhecer,
outros temem e outros ainda odeiam até mesmo em falar de autoconhecimento.
Conhecer entende-se como apropriação do objeto, percepção
clara, análise assertiva. Ao conhecer-me, eu me aproprio de mim, ao mesmo tempo,
como sujeito e objeto e prontifico-me a me determinar nos meus objetivos e
escolhas, bem como a realizá-los, com tomada de consciência, em todo o
processo.
Há um fato interessante que, ao iniciar um novo ano, muitas
pessoas refazem, continuamente, os seus objetivos: ‘não realizei o ano passado,
mas este ano eu me proponho a realizá-los’. Expõem uma porção de
justificativas, as quais evidenciam, com certeza, pretextos de não prioridade
ou a incoerência desses objetivos.
Donde provém esta incoerência?
Por
que desistimos?
Por
certo, há algo dentro de nós que está bloqueando este nosso querer, algo invisível,
que transparece na ansiedade e na inquietude da busca sem jamais realizar. E,
na maioria das vezes, mascaramos nossa desistência com a fantasiosa afirmação:
“estou apenas protelando, mas não desistindo”.
Pode-se
ainda questionar: se todos nós nascemos para uma vida feliz, e, se a santidade
é disponível a todos, por que não somos felizes, por que não somos santos? Será
que estamos fazendo do ser feliz, do ser santo um faz-de-contas ou uma quimera
ou uma dependência extrínseca?
Antes
de tudo, é importante nos perguntarmos a nós mesmos:
O
que me está contagiando?
Com
quê eu estou contagiando o outro, a minha família, os meus amigos, a minha
comunidade?
A estrada do autoconhecimento é árdua, porém, necessária. É
incômoda, mas tranquiliza.
Anselm Grün escreve[6]:
“Por um lado, o homem se
conhece a partir da grandeza de Deus que nele se reflete. O homem é uma imagem
de Deus. Esta visão do conhecimento de Deus nós a encontramos, sobretudo, em
Orígenes e Ambrósio e, mais tarde, por influência destes dois, nos escritos
monásticos da Idade Média, em Bernardo de Claraval (+1153) e Guilherme de St.
Thierry (+1148):
Conhece-te a ti,
porque és a minha imagem, e assim hás de conhecer a mim, de quem és a imagem.
Em ti tu me encontrarás.
Mas, ao mesmo tempo, como diz
Bernardo, o homem deve reconhecer que é uma imagem desfigurada de Deus:
Reconhece-te como
imagem de Deus e envergonha-te por a teres recoberto com uma imagem estranha.
Lembra-te de tua nobreza e envergonha-te de quanto decaíste! Não deixes de
reconhecer tua beleza, para que mais ainda te angusties por tua fealdade.”
Holismo
O valor é uma
dimensão do ser e também dimensiona a fé.
O valor condiciona o nosso
agir.
Porém, que valor é esse, que,
muitas vezes, contraria minhas atitudes? Que eu digo que professo e minhas
ações denunciam o contrário?
Que valor é esse que prende a
minha liberdade de voar?
Minha determinação de ser santo é congruente com minha
liberdade? É expressa em minhas atitudes do dia-a-dia? Ou há desconformidade
entre minha conduta e o objetivo que digo acalantar?
Ora, a liberdade é a energia fecundante do ser. Ela é
integrante da vida, mas seu exercício se plenifica ao colocar-nos em marcha,
rumo aos nossos anseios de realização. E a primeira e fundamental coisa a fazer
é libertá-la dentro de nós. Libertá-la de padrões bloqueadores, de conceitos
paralisantes, de mios inocentes, de atitudes que nos geram posteriores
remorsos, porque despidas de esperança.
Sêneca
já nos exortava: “Queres saber em que consiste a liberdade? Em não temermos os
homens nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral ou excessivo; em termos
o maior domínio sobre nós próprios: sermos donos de nós mesmos é um bem
inestimável!”[7]
Sócrates
acreditava que o homem livre é aquele que consegue dominar seus sentimentos,
seus pensamentos, a si próprio, sendo a escravidão o domínio das paixões. A
concretização da liberdade é o autodomínio. É dele a célebre frase: “Conhece-te
a ti mesmo”.
Dentro de nós, há uma multidão de assessores –
deuses -, que tentam assumir o comando de nossas vidas.
Que tal buscarmos conhecê-los, chamando-os pelos seus nomes e
identificando seus objetivos, suas manhas, suas arruaças, suas manipulações,
tentando empanar dons e qualidades, que Deus nos deu, fazendo de nós, nossos
palhaços e nossos inimigos?
Conhecer padrões limitantes e o ciclo de frustração, que,
muitas vezes, nos abatem, somente é possível com um mergulho não apenas dentro
de si, mas no fulcro e na sua raiz para lograr construir uma relação profunda e
consciente.
Como exercitar o
autoconhecimento
“Mas tu, Senhor, fizeste-me voltar a mim mesmo, eu que havia virado as
costas a mim porque não me queria ver, e me puseste face a face comigo mesmo
para que eu visse a minha fealdade e minhas deformidades, visse como estou
cheio de sujeiras e de manchas e de úlceras. E eu vi e espantei-me, e não soube
para onde fugir de mim mesmo.”[8]
O conhecimento de si mesmo é base de construção para o
nascimento de um novo homem com Deus.
No século IV, o monge Evágrio Pôntico fazia a seguinte
exortação: “Se queres chegar ao conhecimento de Deus, procura antes conhecer-te
a ti mesmo.”[9]
Nascemos seres completos, porém inacabados, em vista da
responsabilidade de trabalharmos a nossa própria realização, rumo ao que
decidirmos seguir. E, se não decidirmos com clareza e objetividade, qualquer
rumo serve.
Nesta empreitada, é necessário ficar claro que, contudo, a plena realização, a perfeição, em
meio a nossas limitações e contingências, é uma impossibilidade ontológica.
Nossa finitude não nos permite ser perfeitos, porém, dá-nos a possibilidade de,
em nos conhecendo, fazermos os reajustes de nosso holismo existencial, em vista
do foco que estabelecemos. A insaciabilidade, que aponta sempre para uma realização
plena, a insatisfação que busca sempre melhorar é que nos vislumbra o Valor
Absoluto, o caminhar para Deus, a sede do eterno. Espiritualidade que nos leva
à santidade.
Não
é sensato viver como o peixe que não se dá conta da água que o cerca. Nem
tampouco cultivar uma espiritualidade ingênua, que paralisa a energia do
caminhar e mascara nosso joio.
Em
nossa contemporaneidade, quando se exalçam os padrões do hiper modernismo, com
algumas bandeiras que nos empolgam, a santidade tem suas raízes na
Verticalidade e dela se esparze na fraternidade: ser fraterno, sim, mas por
Jesus Cristo, pois nada foi e é feito sem Ele. Uma fraternidade apenas horizontal,
capenga do mastro que une o céu à terra, destrói-se, sem atingir os umbrais da
eternidade. Outrossim, para nós cristãos terá como centro sempre Jesus Cristo.
A
tecnologia, que nos desobriga de uma porção de atividades, deveria ensejar mais
disponibilidade de tempo para atividades familiares e interiorização de nossa
axiologia de vida.
É
nesse ‘imbroglio’ social, cultural, religioso, que a humanidade navega. E nós,
cristãos, católicos precisamos nos encontrar para consolidar nossos valores e
reafirmar nossas crenças, sobretudo, num momento histórico de ‘comunhão’ com
todos os nossos irmãos – humanos como nós – de todos os continentes, de todas
as raças e de todas as crenças.
A
santidade não é uma teoria, nem se adequa às vicissitudes de conceitos
sabotadores e/ou paralisantes, nem é excludente. Existem várias trilhas para
chegarmos ao Caminho da santidade, que é o seguimento de Jesus Cristo e todas
elas passam pelo ‘descobrir’ o ser humano que somos. Pois, é esta a oferta que
oferecemos a Deus e sobre a qual descem as inspirações do Espírito Santo.
O
quê, portanto, estamos oferecendo a Deus?
Em
geral, nunca nos ocupamos de nós, porque as nossas falhas, os nossos erros, no
cotidiano de nossas vidas, quase sempre são atribuídos ao outro. São os outros,
que erram, são os outros que nos fazem errar, são os outros os culpados. Eu até
posso me enganar, mas a culpa prefiro jogar nas costas do outro. E de justificativas
em justificativas, esquecemo-nos de buscar o ‘jeito’ de nos corrigirmos e
avançarmos nas qualidades e dons que Deus nos outorgou.
Parecemos
mais o lobo de La Fontaine do que um samaritano.
Santo Agostinho, a esse propósito,
escreveu: “Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos
montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os
majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos.
Não se arriscam na aventura de um passeio interior”.[10]
Aonde
vamos chegar com tais procedimentos? Aonde estamos chegando, em nossas
famílias, em nossas comunidades, em nossos trabalhos?
Estamos
nos prendendo, muitas vezes, numa rede de emaranhados, construída por nós
próprios e restringindo nossa liberdade de ser e crescer. Com isso, a
mediocridade visita a nossa espiritualidade e, como tal, rotula o nosso ‘modus
vivendi’. E entramos num fenômeno entrópico, refugiando-nos em miragens para
‘recalcar’ nossos medos e ocultar nossas máscaras. Porém, eu não posso fugir de
mim, convivo comigo vinte e quatro horas por dia, até quando estou dormindo.
E de tanto usar máscaras, a gente termina
esquecendo quem está por baixo delas.
Por
isso, como já mencionei acima, eu preciso ser livre, livre, inicialmente, de
mim e, assim, esvaziar-me para encher-me de Deus.
A
liberdade começa dentro de mim, quando eu identifico as minhas limitações, a
fonte de minhas justificativas, a razão de minhas incoerências.
E
nós levamos uma vantagem sobre os animais, somos dotados de razão, a qual nos
dá um trunfo: a capacidade de perceber o que podemos e o que não podemos mudar.
Dessa forma, ainda temos mais um bônus da razão: podemos mudar a nossa atitude
em relação ao que não é possível mudar. Sêneca acredita que essa dupla
liberdade é o que nos distingue como humanos e que ela pode ser alcançada com a
prática filosófica.
Uma
oração atribuída a Francisco de Assis diz: Senhor, dai-me
força para mudar o que
pode ser mudado. Resignação
para aceitar o que não pode ser
mudado. E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.
É preciso excomungar o medo, jamais se condenar, jamais se
julgar vítima. A ansiedade e, às vezes, a angústia podem surgir, porém, aos
poucos vão cedendo à aceitação.
Nenhuma espiritualidade pode nos sufocar ou nos amordaçar.
A santidade passa, inexoravelmente, pela humanidade.
Buscar a santidade e não querer reconciliar-nos com o humano,
que somos, é uma farsa e, ao mesmo tempo, fonte de problemas psicológicos
sérios, quiçá idiossincrasias psiquiátricas. O que eu não conheço em mim acumula-se e chega a transformar-se em
dores, tristezas, mal-estares, doenças, remorsos.
A determinação de ver-se no espelho deve vir acompanhada de
sinceridade e lealdade para consigo mesmo. De nada adianta fantasiar, mentir
para si mesmo, pois, sendo mentirosos para conosco estamos também sendo
mentirosos para Deus.
Identificar nossas inconsistências, nossos inimigos interiores,
sem tentar maquiagens ou justificativas e, a partir daí, exercitar não a sua
exclusão, nem o seu esquecimento, mas o controle com os dons e virtudes que
temos dentro de nós. Pois, o que está sob minha dependência são minhas palavras, minhas ações, minhas
ideias, meu papel, meus esforços, meus erros, meu comportamento, minhas
atitudes. E é-me imperioso assumir o seu governo e sua administração.
Ao conhecer, portanto, nossas imperfeições, somos levados a
uma postura de humildade, que nos vai possibilitar um redirecionamento de rumo,
assumindo as rédeas da jornada.
O cientista Aldous Huxley (1894-1963) escreveu:
“existe apenas um canto do
universo que você pode ter a certeza de aperfeiçoar, que é você mesmo.”
O autoconhecimento é um processo continuado, que vai
identificando dentro de nós coisas novas e coisas velhas, sem a pressa de
querer, de imediato, vasculhar tudo. Imaginemos o que aconteceria com um vaso,
se recebesse um turbilhão de água de uma só vez.
À medida que nos vamos aprofundando, mais humanos nos
tornamos e assim podemos ofertar ao Pai nosso espírito vazio, com ardente sede
de Deus, cuja chama nos ilumina e cujo amor nos envolve.
Nisto, construímos uma espiritualidade que nos move o agir.
É importante destacar:
Deus nos ama como somos, mas não nos deixa como estamos.
Alguns bloqueios
Ver-se como se é não parece ser tão fácil a uma cultura do parecer, do culpabilizar, do julgar, do isentar-se de defeitos e culpas.
O concreto, muitas vezes, nos
sufoca: por que isso acontece...comigo?
A resposta não pode ser dada, sem antes eu me fazer algum
questionamento, no qual eu seja o sujeito e o objeto.
A sinceridade desse momento impõe-se, acima de tudo, numa
postura de humildade, ou seja, de ver-se e aceitar-se para começar a ser o que,
deveras, se quer ser, mudando padrões, quebrando tabus, e mesmo, até agitando
nossa inércia, se for necessário para despertamos o foco de nossos objetivos.
Cada
pessoa vive experiências e sensações distintas. Não há receitas prontas, nem
modelagens fixas.
Por que muitos querem ser felizes e poucos o são?
Por que muitos querem ser santos e uma pequena porção o
consegue?
Certa vez, alguém me questionou: por que Deus dá pouco para
muitos e muito para poucos?
Ora, Deus sempre atende às nossas necessidades de crescer e
de frutificar os nossos dons: a seiva vitalizante nunca falta. Nós é que muitas
vezes criamos impedimentos, quando não, nos fazemos nossos próprios inimigos. E
buscamos culpar o alheio.
Alguns impedimentos e bloqueios:
1. Autossabotagem
Pessoas que põem em dúvida sua capacidade de ter êxito em
seus objetivos, em seus sonhos, em sua vida.
A santidade é para os padres e bispos, para pessoas que
abandonam tudo para se dedicar à oração. Para mim é algo muito difícil, não
tenho cacife para chegar lá. Talvez um dia eu possa até iniciar uma tentativa.
A autoimagem está presa a uma redoma que me açoita valores e
esmaga dons.
2. Projeção
Está mais presente do que a gente imagina. Alguns
sentimentos, atitudes que reprovamos no outro, podem se tratar de uma rejeição
de mim mesmo: como não os identifico em mim, vejo-os no outro e incomodam-me.
Assim, o fato de
tratarmos esta pessoa com hostilidade, apesar das nossas justificativas, demonstra
que quem está cometendo hostilidade somos nós mesmos.
3. Negação
Diante de uma situação, de um comportamento meu ou um fato
acontecido comigo, recuso-me a aceitá-lo: o fofoqueiro – eu não gosto de
fofocas, mas vou apenas lhe falar porque confio em você.
O psicólogo Carl Alasko, Ph.D., comentando este mecanismo,
diz: “a realidade sempre vence. E quando ela vencer, o próximo passo no
processo é culpar, o que desloca a responsabilidade para outra pessoa ou
coisa.”[11]
4. Repressão
Pensamentos e sentimentos, que sinto serem pecaminosos, procuro
reprimi-los, porque para a santidade é preciso rejeitá-los.
5. Racionalização
Diante de certos fracassos e perdas, que impactam objetivos e
sonhos, eu uso falsas alegações racionais, como se fossem boas razões para
acomodar a angústia do conflito. Assim, num fracasso em prova de concurso, que
eu queria tanto, eu digo ‘foi até bom, pois, eu não estava mesmo afim deste
emprego’. Com isso, tento transformar este fracasso em algo neutro e
justificável, de tal modo que eu não me sinta mal.
Outra maneira de racionalização é culpar o outro, por
exemplo, tomar o lugar de alguém numa fila e culpar o outro por não estar
displicente, desatento, isentando-se de qualquer culpa.
6. Formação
reativa
Há inversão de sentimentos, diante de um objeto de desejo.
Por exemplo, se tenho apreço ou amor por algo ou alguém, e, sabendo que esse
sentimento não é correto, não o admito e passo a emoções opostas extremas,
fazendo-me de vítima, de injustiçado.
7. Expiação
O indivíduo, sentindo-se
incapaz de lidar com o sentimento de culpa de seu erro, quer pagar o preço,
imediatamente. Ou seja, precisa ‘expiar’ ou projetar em alguém já
pré-determinado essa angústia.
8. Deslocamento
Diante de uma ofensa, uma reprimenda, uma mágoa, você
permanece calado, mas, depois, precisa encontrar algo ou alguém para
descarregar sua raiva, seu mal-estar.
Além desses mecanismos, ainda podemos laborar em outras
situações, como:
a. Dissonâncias
cognitivas
Quando há uma contradição entre meus pensamentos e
sentimentos e minha prática diária.
b. Distorções cognitivas
Maneira destorcida de
interpretar certas situações e fatos do dia-a-dia.
As distorções cognitivas são
um esforço para nos convencer de algo que não é, realmente, verdade. E nos
fazem sentirmo-nos mal conosco, mal-estar psicológico e emocional intensos.
Exemplos: ‘As pessoas olham para mim com desprezo’, ‘Não
presto para nada’, ‘Quando falei para o padre que estava tentando ser santo,
ele me deu um sorriso irônico, achando que eu sou incapaz’.
Conhecer os mecanismos, que nos molestam e nos camuflam,
ajuda bastante no exercício do autoconhecimento e nos predispõe a ver com mais
firmeza os percalços que nos estão dificultando o seguimento de Jesus Cristo.
Além disso, há pessoas dominadas por imunidade cognitiva, que
não conseguem admitir mudanças em seus padrões mentais.
É necessário compreender que a santidade é uma jornada e
nunca se aloja numa zona de conforto, nem se isola numa ilha. Abre-se para
sempre novos propósitos, prepara-se para novos riscos, expande seus horizontes,
tem consciência dos erros que comete, os quais impulsionam o crescimento da fé,
na humildade de servo de Deus.
Li, em algum lugar, o seguinte monólogo:
Eu quis e não consegui.
Eu tentei e não deu certo.
Eu mudei de caminho e de nada
adiantou.
Foi, então, que cheguei à
conclusão de que o problema estava em mim: eram as minhas escolhas erradas.
Isso pode até assustar, mas permanecer parado será bem mais
perigoso.
A oração: instrumento de
autoconhecimento
“Por que dormis? Levantai-vos, orai,
para não cairdes em tentação.”[12]
Clemente
de Alexandria escreveu:
“Parece, pois, que o mais importante
de todos os conhecimentos é o conhecimento de si próprio; pois, quando alguém
se conhece a si próprio, ele há de chegar ao conhecimento de Deus.”[13]
Ao
afirmar Jesus: “Quando orares, não sejas
como os hipócritas... ao contrário, entra no teu quarto”[14], Ele orienta para uma
oração pessoal, com um aspecto também analítico. Um olhar a discernir os
contraditórios, que se digladiam dentro de mim, as sombras e as luzes, os dons
e os defeitos, o que me faz crescer e caminhar para uma vida santa e o que me
turva a mente e endurece o meu coração.
Anselmo
Grün escreve:
“A
oração impele-nos ao autoconhecimento porque se não conhecermos nossos
pensamentos e impulsos mais íntimos, nós não podemos concentrar-nos para rezar.
Sem vigilância, nós somos constantemente perturbados por distrações na oração.
Mas também vice-versa: as distrações
que continuamente nos aparecem na oração constituem um bom meio para nos
conhecermos a nós mesmos. I. Hausherr, um dos maiores conhecedores do
monarquismo antigo, acha que as distrações na oração possuem para o
autoconhecimento a mesma função que os sonhos:
As distrações são muito valiosas, por
causa das pistas que elas nos fornecem. São uma espécie de sonho acordado sobre
aquilo com que nos ocupamos.”[15]
As distrações ocorrem por pensamentos intrusivos, que nos
chegam sem aviso e nos invadem a mente. Não adianta lutar contra eles, nem
tentar expulsá-los, mas aprender como dissuadi-los de ficar conosco.
E continua:
“O autoconhecimento
não é apenas uma condição para a oração, mas também o contrário: a oração é uma
ajuda para o homem se conhecer a si mesmo.
Não existe coisa
alguma que esquadrinhe o coração mais profundamente do que a oração. Quando
oramos, nós nos colocamos na presença de Deus e somos esquadrinhados por Ele
até o mais íntimo de nós. Tudo torna-se manifesto.”[16]
Percebendo minhas limitações, a oração me possibilita
adentrar no autoconhecimento espiritual, onde agora estabeleço um diálogo de
mim com Deus sobre mim para identificar as raízes das desordens expressas em
minhas atitudes e da tipagem de meus pensamentos e sentimentos.
Se, nessa varredura, eu não me despojar das minhas dissimulações,
posto-me também mentiroso diante de Deus, iludindo-me e tentando enganar a
Deus.
No ‘meu eu’, é que me encontro, verdadeiramente, com Deus e
construo uma piedade não intimista, nem romântica, nem egoísta.
A perícope de Marcos do cego Bartimeu mostra que precisamos
ir ao encontro de Deus. Jesus passou por Bartimeu, não parou para falar com
ele, mas, depois ao ouvi-lo clamar por Si, parou e mandou chamá-lo. E, à sua
súplica “Domine, ut videam” [17], Jesus
diz-lhe: “Vai, a tua fé te salvou”.
Nós precisamos lançar fora nossas capas e sair ao encontro de
Deus. E a oração é esse encontro amoroso e misericordioso de nossas
fragilidades com a força das graças de Deus. É a nossa humanidade que se
encontra com a Divindade.
E, nessa navegação, eu me vejo no barco da humanidade,
portanto, orante e convivente com todos.
Assim, permaneço atento às palavras do Mestre:
"Como podes
dizer a teu irmão: Deixa-me, irmão, tirar de teu olho o argueiro, quando tu não
vês a trave no teu olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e depois
enxergarás para tirar o argueiro do olho de teu irmão."[18]
A oração ensina-me o poder e a força do perdão.
Por ela, aprendo a agradecer tanto os acontecimentos bons
como os ruins, os que agradam e os que desagradam e perquiro o seu sentido.
A oração, no entanto, não é um recurso terapêutico, nem uma
técnica, mas união com Deus, cuja presença nos analisa e nos cura. União
dialogal e humilde.
Anselmo Grün faz esta exortação:
“Mas, sem ascese, a oração permanece palavreado vazio e inconsequente.
Assim diz a Philokalia:
Nunca esqueças que a
oração por si só não é perfeita, mas precisa estar unida a todas as virtudes,
que são como os órgãos da alma que constituem nosso organismo interior. Só
quando alcançam um certo grau de desenvolvimento é que estes conseguem viver no
espírito. Na medida em que os adquires, mais perfeita se torna também a tua
oração. Sem eles a oração não produz fruto.[19]
A oração nos ajuda a distinguir o que provém do Espírito e o
que lhe é contrário. E nos aponta o tempo e o modo de fazer uma poda para nos
despir de um coração embrutecido por ódio, egoísmo, autossuficiência, inveja, e
que nos tornam vítimas de nossa presunção.
A oração, à semelhança do ar puro, que dá energia aos
pulmões, vitaliza a alma. É o alento da vida e o sopro da alma.
Para
Tomás de Aquino “a oração é necessária
não para que Deus conheça as nossas necessidades, mas para que nós fiquemos
conhecendo a necessidade que temos de recorrer a Deus, para receber
oportunamente os socorros da salvação.”
A oração não dispensa nossa responsabilidade de agir.
Autoconhecimento e
alteridade
A psicóloga americana
Joyce Diane Brothers, falecida em 2013, escreveu: “o autoconceito do indivíduo
é o centro da sua personalidade. Ele afeta todos os aspectos do comportamento
humano: a habilidade de aprender, a capacidade de crescer e de mudar. Uma autoimagem
positiva e forte é a melhor preparação possível para o sucesso na vida.
Trago à nossa consideração duas ilustrações:
Estamos no trânsito e alguém, à minha frente, faz uma
barbeiragem, demora a sair quando o sinal verde abre ou vai devagar. Fico
nervoso e vocifero palavrões para esta referida pessoa. Em quase um reflexo,
exibo comportamento selvagem e de desrespeito a mim próprio, pois, noutras
circunstâncias eu também cometi barbeiragens e, com certeza, não gostei se
alguém me humilhou e me xingou em público. Aliás, quem nunca as cometeu alguma
vez? Esta exibição contraria minhas convicções de ‘empatia’, de fraternidade
e diz muito de minha paciência e
respeito ao próximo.
Ainda no trânsito, alguém vindo de uma via secundária,
sinaliza pra entrar e eu, de propósito, avanço para não dar espaço para o carro
entrar. Não me vem à mente que esta situação já se passou comigo e com certeza,
vai se repetir, nem tampouco penso que pode ser um caso de urgência.
Esses dois singelos momentos poderiam ter outro desfecho, se
eu tivesse conhecimento de minha humanidade, que está também no outro. A
dignidade, que postulo para mim, é a mesma do outro. Pois eu sou o outro do
outro.
E aqui encrava-se, mais uma vez, o mandamento do amor: “amar
ao próximo como a si mesmo”. Se o outro é o meu próximo, eu sou o próximo do
outro.
Nossa espiritualidade reflete o conhecimento e o amor que
temos por nós. Uma espiritualidade intimista está mais para uma prisão do que
para a liberdade de amar.
Quanta piedade inútil, quando se limita à igreja, ao invés de
levar a igreja para dentro de si, para o mundo, para as pessoas de nossa
família, do nosso entorno.
Lembro aqui um caso ocorrido em minha infância. Na cidade,
havia um moço muito católico, sua casa era centro de catequese e de celebrações
eucarísticas, inclusive algumas presididas pelo senhor bispo. Gozava de grande
prestígio na comunidade e na igreja. Certo dia, fomos surpreendidos por uma
notícia cruel: ele havia assassinado um cliente de seu comércio por causa de
uma dívida insignificante. Duas famílias destruídas pelo descontrole de uma
pessoa que cultivava uma espiritualidade, aparentemente, consolidada. Sem fazer
qualquer julgamento, o não controle de suas emoções e sentimentos fez
crescer-lhe a impulsividade, como uma bola de neve, e o gatilho disparou.
Nossas emoções, é consenso, irrompem antes que o racional dê
as caras. Daí que a criança, ainda sem nenhuma noção de limites, experimenta as
alegrias de um aconchego, como manifesta intensamente o desconforto, a ‘raiva’,
em situações que lhe desagradam e incomodam. E é, no convívio familiar, que ela
vai iniciando as atitudes coerentes, mesmo sem saber, nem conhecer o porquê.
As emoções, mais tarde, nos surpreendem e, quanto mais
violentas, mais nos falam de desordens, de falta de controle, de domínio, de
demasiada importância que lhe atribuímos. Sem elas, não podemos viver, no
entanto, há como surpreendê-las também, pelo exercício frequente e ordenado de
comandos. Pensar que, sem nenhum esforço, é possível controlá-las é pueril,
assim como tomar decisões, no auge de qualquer emoção, é temerário. Emoções
incontroláveis agigantam-se cada vez mais, escravizam-nos e, segundo Cassiano,
são um sinal de que os vícios ainda possuem fortes e viçosas raízes dentro de
nós[20].
Quando
tomo consciência de minha humanidade, quando me descubro humano e, portanto, um
ser de limitações, posso, então, compreender o drama e a contingência humana e
chamar, conscientemente, os outros de irmãos, como fazia Francisco de Assis.
“Só
é possível ver as chagas do outro, quando se olha para dentro de si mesmo,
reconhecendo as limitações e identificando o local das feridas.”[21]
O depoimento de
homens e mulheres santos
“Para conhecer a Igreja é
preciso olhar para os santos”
Como vimos expondo, a santidade passa por nossa humanidade,
pois, é com ela que a construímos, na abertura para Deus e sob a inspiração do
Espírito Santo.
É preciso passar do
‘dever’ ser santo para o ‘ser’ santo, de fato. O autoconhecimento aponta-nos o
caminho da humildade e nos orienta uma ascese cristã.
Ele tem se constituído uma maneira de os santos tocarem Deus,
cada um com os seus talentos, com o ‘seu jeito’ de seguir Jesus Cristo.
“Conhecer-se a si mesmo é uma necessidade e um dever do qual
ninguém pode subtrair-se. O homem tem necessidade de saber quem é. Não pode
viver se não descobre que sentido tem sua vida. Arrisca-se a ser infeliz se não
reconhecer sua dignidade”.[22]
O salmo 143, no versículo 3, leva-nos, extasiados, a nos
prostrar diante de nosso Criador e a postar esta maravilhosa, humilde e
agradecida pergunta:
Que é o homem,
Senhor, para cuidardes dele? Que é o filho do homem para que vos ocupeis dele?
Primícias de nossa abordagem, invocamos a pessoa de Maria,
que canta a sua humildade reconhecida ante o Senhor, que nela fez maravilhas e,
por isso, exulta o seu espírito.
Santo Agostinho: “Conhece-te, aceita-te, supera-te. Com isso,
ele nos ensina que quanto mais nos conhecemos, tanto mais conhecemos Aquele que
nos criou e que é a Luz do mundo.
Mas Tu me chamaste, clamaste por mim e Teu
grito rompeu a minha surdez… “Fizeste-me entrar em mim mesmo… Para não olhar
para dentro de mim, eu tinha me escondido. Mas Tu me arrancaste do meu
esconderijo e me puseste diante de mim mesmo, a fim de que eu enxergasse o
indigno que era, o quão deformado, manchado e sujo eu estava.”[23]
Santo
Tomás de Aquino diz: “Quanto mais vou ao encontro de mim mesmo, mais descubro
em mim um Outro que não sou eu e, no entanto, é o fundamento de meu existir.”
Francisco de Assis segue um processo lento no caminho para a
santidade: a experiência da crueldade da guerra – as perguntas em Spoleto “Francisco,
a quem é melhor servir, ao amo ou ao Criador?” e sua resposta “quem és
tu, Senhor? O que queres que eu faça?’ O crucifixo de São Damião que lhe
fala “Francisco vai e repara minha casa, que está em ruínas”. E, no
recolhimento, meditava e encontrava-se, dialeticamente, consigo, revia seus
valores, atualizava seus princípios de vida. E, diz seu biógrafo, Tomás de
Celano, “quando parou de adorar a si mesmo, começou a compreender Deus”
e abriu sua mente e seu coração a Deus.
Santa Teresa de Jesus, doutora e mestra na vida de oração,
nos exorta:
“A causa de grandes males é o fato de não nos conhecermos
devidamente, é distorcermos o conhecimento próprio”[24].
Santa Teresinha do Menino Jesus: “Eu sou o que Deus pensa de
mim.”[25]
"Ó meu Deus, longe de me desencorajar à vista de minhas
misérias, venho a vós com confiança…" Pois "eu sou pequena demais
para subir a rude escada da perfeição."
Santa Teresinha mergulhou dentro de si e, em vendo sua imagem
de Deus, entabulou diálogo com o Criador, deixando-se moldar por Ele, de tal
modo a colocar-se em Suas mãos, na sua humildade.
Santa Teresa de Ávila sempre falava do conhecimento de si
mesmo como meio de gerar mudança de vida e busca de santidade.
“A alma voltada para o próprio conhecimento deve voar algumas
vezes, a fim de considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Ela constatará
a sua baixeza mais do que olhando para si (...) A questão de nos conhecer é tão
importante que eu gostaria que não houvesse nisso nenhuma negligência.”[26]
“Jamais chegamos a nos
conhecer totalmente se não procurarmos conhecer a Deus. Olhando a sua grandeza,
percebemos a nossa baixeza; observando a sua pureza, vemos a nossa sujeira;
considerando a sua humildade, constatamos como estamos longe de ser humildes”[27].
O autoconhecimento, escreve, “é como a água que está num
vaso: não sendo iluminada, parece límpida; se o sol a atinge, logo vê que está
cheia de poeira”.
Ainda: "O autoconhecimento é tão importante que, por mais próximo
que você esteja do céu, eu gostaria que não descuidasse do cultivo de sua
percepção de si mesmo."
Transcrevo dois trechos de São Bernardo de Claraval:
“Tu não necessitas, homem,
cruzar os mares, atravessar as nuvens, escalar os alpes. Eu te asseguro, o
caminho não é assim tão longo: Basta que entres em ti mesmo para
aí encontrar teu Deus.”
“Assim, não se conhecendo a si mesma, a
criatura, cuja razão a distingue dos animais, começa a se confundir com eles,
porque ignora sua própria glória que é inteiramente interior, cede à tentação
da curiosidade e não se preocupa mais senão com a beleza exterior e sensível;
ela se assemelha às outras criaturas porque não percebe que recebeu algo a mais
que elas.”[28]
Para
Mestre Eckhart, não há santidade sem buscar uma reconciliação da interioridade
com a exterioridade.
Muitos
parecem estar em perfeita paz, quando as coisas lhes correm à medida dos seus
desejos; mal, porém, lhes não sucedem à vontade, logo se perturbam e se
entristecem.[29]
Todavia, o medo e/ou a fuga, às vezes, nos fazem passar a
vida inteira, sem nunca buscarmos viver o que realmente somos e o que deveras
queremos.
Conclusão
Ao final desta
palestra, gostaria de enfocar alguns aspectos importantes:
1. O autoconhecimento não se
basta. É preciso aceitar-se, com humildade, para poder palmilhar a estrada de
aperfeiçoar-se, cada dia. Ele aumenta a
compreensão de nós, do outro e do mundo e abre o espírito à liberdade e à
autoestima. O autoconhecimento não é varinha de mágica e constitui apenas ponto
de partida. Ele pode também enclausurar a pessoa nos seus vícios e nos seus
erros, a depender dos seus valores e princípios;
2. O autoconhecimento pode nos constranger:
Em carta a um jovem, o monge Nilo escreve:
“Antes de tudo, conhece-te a ti mesmo. Pois, não existe nada
mais difícil do que conhecer-se a si mesmo, nada mais trabalhoso, nada que
exija maior esforço. Mas quando chegares a conhecer-te a ti mesmo, também
poderás conhecer a Deus.”[30]
Anselmo Grün transcreve, em seu livro, este belo e impactante
trecho:
“Enquanto a compreensão permanece na cabeça, tua meditação se dirige
para o genérico. O coração, pelo contrário, atinge o particular, o que se
refere a ti próprio. Sem qualquer rodeio nem desculpa, ele dirige tudo para ti
pela via mais eficaz, a que te atinge mais profundamente. Experimentas
diretamente teus próprios erros e fraquezas, assim como as luzes ou sombras das
coisas.” [31]
Por isso, ele deve ser acompanhado por alguém que tenha
condições de orientar e aconselhar.
3. O autoconhecimento favorece a construção da liberdade
interior e da maturidade humana, estimula a capacidade de discernimento e
fortalece a resiliência, promove uma aproximação mais íntima com Deus e mais
comprometida com as criaturas. Com isto, possibilita-nos rever a articulação de
nossas convicções, que davam sentido a todo compromisso e modelavam a nossa
realidade.
4. O
processo de autoconhecimento muda a forma como uma pessoa interage com o mundo
e com as outras pessoas, abrindo a possibilidade para conhecer e aprender novas
coisas. Ajuda a aprender a utilizar nossos erros e a trabalhar nossos
fracassos, a rever nossas tentativas e a redefinir estratégias diante de nossos
obstáculos.
5.
A espiritualidade é como o sol que dá vida, sentido e cor a tudo. ilumina
nossas trevas e clareia nossas sombras.
6.
A santidade é o chamado de Deus a cada um de nós. É um convite à luta para o
retorno ao Paraíso. Diz-nos Paulo: "Porque a
Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes
e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os
pensamentos e intenções do coração."[32]
A
busca de uma conexão consigo mesmo e, com algo maior do que nós, traz
sentimento de paz interna, gratidão, aceitação, contentamento, completude e
serenidade.
Enfim, O autoconhecimento, de fato, nunca se consome, nunca
termina, pois até a morte ainda estaremos em busca de responder tantas
perguntas sobre nós ou de conhecer o que até então desconhecemos.
Assim, diz São João Paulo II: “Fazer-se santo é uma dura conquista e supõe uma dedicação e um esforço
que, no fundo, duram toda a vida.”
O autoconhecimento, nos desaliena, nos dá autoconsciência e
nos dirige a um encontro de amor. Encoraja-nos a nos desintoxicar dos males que
nos acorrentam.
A santidade é com o que você é e não com o que você parece.
“Fostes Vós que plasmastes as entranhas de
meu corpo, Vós me tecestes no seio de minha mãe. Sede bendito por me
haverdes feito de modo tão maravilhoso! Pelas vossas obras tão
extraordinárias, conheceis até o fundo a minha alma...” (Sl 138, 13)
Sim, vale a pena cultivar o jardim da fé.
Sim, valem a pena a serenidade, a paz.
Sim, vale a pena ser santo.
E que não aconteça, na hora de nossa morte, o que diz Sêneca:
“somos piores ao
morrer do que ao nascer. E nisso o defeito é nosso, não da natureza”.[33]
Em minha nudez
Me encontrei.
Em cada perda
Ganhei.
Em cada decepção
Aprendi.
Em cada dor
Amadureci.
Em cada prisão
Me fortaleci.
Em cada emoção
Adquiri vigor.
Em minha nudez
Me encontrei.
Em cada não
Encontrei um sim.
Em cada lágrima
Contemplei um sorriso.
Em muitos sorrisos
Vi mágoas,
Enxerguei desespero,
Vi traição,
Enxerguei hipocrisia.
Em minha nudez
Me encontrei.
No passado
Me compreendi.
No futuro
Me sonhei.
No presente
Me vivo.
Em minha nudez
Deus permanece
Dentro de mim.
E eu O encontrei
E jamais O deixarei.
Referências bibliográficas
1. CASTRO,
Luiz A., Deixar que o outro seja, ed.
Paulinas, 1986
2. GRÜN,
Anselm, Oração e Autoconhecimento,
Ed. Vozes, 2004
3. NOVAIS,
Germano, de O Espelho e a Autoestima, Ed.
Loyola, 1994
4. Bíblia
Católica
5. DE
ARAUJO, Pedro Bezerra, Teu trabalho, tua vida,
tua cara, ed. João Scortecci, 1995
6. LELOUP,
J.Y, ed. Verus, 2002
7. CURY,
Augusto, Superando o Cárcere da Emoção, ed. Academia da inteligência, 8ª
e., 2000
8. BEATTIE,
Geoff, Toda Mudança Começa em Você, ed. Fundamento, 2014
9. DE
ARAUJO, Pedro Bezerra, Autoestima
em Lucas, monografia de término de curso de Teologia, Fortaleza, ITEP, 2003.
Sugestões:
[1]
- cfe. Ef 1,4.
[2] - Malvar
Fonseca, J, Conhecer-se, edit. Quadrante, 5ª ed. 2018
[3] - Cf. MENDONÇA,
Jacy de Souza. O Curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara.
Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999. p. 150.
[4] - Saramago, Ensaio
sobre a cegueira.
[5] - Patrologia
Latina 180, 494; cf. J.M. Déchanet, La
connaîssance de soi d’après Guillaume de
Saint-Thierry, Supplément à la Vie
Spirituelle, 1938.
[6] - GRÜN, Anselm, Oração e Autoconhecimento, Edit. Vozes,
Petrópolis-RJ, 2004, pags. 14-15.
[7] - Cartas a
Lucílio, 75, 18.
[8] - Santo
Agostinho, Confissões.
[9] - GRÜN, Anselmo,
Idem, pag.13.
[10] -
https://www.radiorainhadapaz.com.br/noticias/noticia/id:15799;tarde-te-amei-de-santo-agostinho-uma-das-mais-arrebatadoras-oracoes-de-todos-os-tempos.html
[11] - Carl Alasko, Assuma o controle de sua vida, ed.
Lafonte, 2011.
[12] -
Mt 26,47; Mc 14, 43; Lc 22,46; Jo 18,1
[13] - apud GRÜN,
Anselm, Idem, pag.13
[14] - Mt 6, 5-6.
[15] - GRÜN, Anselm, Idem, pag.22.
[16] - GRÜN, Anselm, Idem,
pag. 23.
[17] - Mc
10, 51-52.
[18] - Lc, 6, 42.
[19] - GRÜN, Anselm, Idem,
pag. 67-68.
[20] - Cassiano, apud
Anselm Grün, Oração e Autoconhecimento,
pag.
[21] - OLIVEIRA,
Marcelo J.S., São Francisco vive no
Canindé: a peregrinação e seus enigmas, edit. Opção, 2005.
[22] - CENCINI,
Amadeo, Amarás o
Senhor teu Deus, ed. Paulinas,
pag 8.
[23]
- https://www.radiorainhadapaz.com.br/noticias/noticia/id:15799;tarde-te-amei-de-santo-agostinho-uma-das-mais-arrebatadoras-oracoes-de-todos-os-tempos.html.
[24] - Santa Teresa
de Jesus, Castelo Interior.
[25] - Santa
Teresinha do Menino Jesus, História de
uma alma.
[26] -
https://www.sites.google.com/site/factosdavidareal/literatura/santa-teresa-de-vila/a-humildade
[27] - Santa Teresa
de Jesus, Libro das Moradas ou Castelo
Interior.
[28] - São Bernardo
de Claraval, Tratado sobre o amor de
Deus, edit. Paulus, 2015.
[29] - Thomas Kempis,
Imitação de Cristo.
[30] - Patrologia
Grega, apud GRÜN, Anselmo, Oração e autoconhecimento, pag.14.
[31] - cfe. I.
Hausherr apud GRÜN, Idem, pag. 35
[32] - Hb 4, 12.
[33] - Cartas a
Lucílio, 22,15
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