Autoconhecimento e espiritualidade: Uma trilha no caminho da santidade

Palestra proferida em 01/11/2021 no Congresso Brasileiro de Hagiologia


Por Pedro Bezerra de Araújo





Paz e Bem!

Quero saudar meus colegas confrades e confreiras da ABRHAGI e todos e todas que estão sintonizados com este nosso Congresso Brasileiro de Hagiologia.

Sejam bem-vindos!

 




Oração inicial

Senhor, que eu saiba primeiro me encontrar, antes de me doar. Que eu possa me auscultar, com firmeza, sinceridade e humildade e aprender quando devo dizer sim e quando devo dizer não, de acordo com minha real vontade e determinação. Nos erros, que eu cometo, que possa me olhar com todo amor e compaixão, encontrar a razão deles e me corrigir, pois tenho certeza de que com a Vossa ajuda e a minha escolha, eu posso cada dia ser melhor. Que eu busque os dons e qualidades que me outorgastes e os desenvolva para o meu bem, para o bem de meus irmãos e para glória de Deus.  Livrai-me, Senhor, das coisas obscuras; que eu aprenda a controlar os pensamentos obtusos, que não combinam com a minha fé, com a santidade que almejo e, muito menos, com os Vossos mandamentos.   Que eu cultive a auto gratidão e saiba agradecer-Vos, Senhor.

Vale a pena ser santo?

Você alguma vez já se fez estas perguntas, seriamente:

Quem sou eu? Qual o meu referencial de vida? O meu pensar, o meu querer e o meu agir têm coerência, no meu dia-a-dia?

 

 

Introdução

“Conhece-te, aceita-te, supera-te.” (Sto. Agostinho)

 

 

 

 


A temática, que pretendemos desenvolver, como apenas um singelo ensaio, e um convite à reflexão, nada mais que isso, é vasta e tem suas complexidades.

Iniciamos com algumas ideias que vão nortear nossa palestra, alguns conceitos para adentramos em considerações outras e pertinentes:

 

1) O que pensamos quando falamos de santidade?

A santidade é um caminho dinâmico, numa direção certa e com um foco definido: seguimento de Jesus Cristo. Este caminho se dá em nossos territórios humanos e passa, por certo, indelevelmente, pela contingência de nosso ser, em meio a erros e acertos, a dúvidas e confianças, alegrias e tristezas, bem como há momentos de luzes e de trevas e pode haver até mesmo alguns de desespero.

A santidade é chamado universal pra os filhos de Deus: “em Jesus Cristo, Deus nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos”[1]

Há muitas pessoas, que desejam ser santas, porém, esquecem-se de que precisam primeiro ser humanas.

 

2) O que entendemos, quando falamos ‘espiritualidade?

A espiritualidade não é uma ‘fuga sui’. É o jeito como cada pessoa vive, é um estilo de vida. Podemos dizer que espiritualidade é a maneira como a criatura pensante se relaciona consigo mesmo, com o outro, com o cosmos e com Deus.

A espiritualidade é, pois, inerente à vida, integra o holismo da vida e a totalidade da pessoa.

No caso da espiritualidade cristã, trata-se de experiência integral de um Deus pessoal, revelado, plenamente, na pessoa de Seu Filho Jesus Cristo: inspirações, convicções que movem o cristão a uma visão e atitude, alicerçada na dinâmica do amor, que se origina na Trindade, fonte de toda a vida e de todo o bem, seu fundamento e sua essência.

 

Eu me relaciono, logo existo

Uma pequena história

Conta Thich Nhat Hann que um monge decidiu retirar-se para meditar sozinho. Longe de seu mosteiro, ele toma um barco e vai até o meio do lago, fecha os olhos e começa a meditar. Depois de algumas horas de silêncio imperturbável, ele de repente sente o golpe de outro barco batendo no dele. Com os olhos ainda fechados, ele sente a raiva crescer e, quando abre os olhos, está pronto para gritar com o barqueiro, que ousou atrapalhar sua meditação. Mas, quando ele abriu os olhos, viu que era um barco vazio, não amarrado, que flutuava no meio do lago. Nesse momento, o monge entende que a raiva está dentro dele; ele simplesmente precisa da batida de um objeto externo para provocá-lo. Depois disso, sempre que conhece alguém que irrita ou provoca sua raiva, ele se lembra: a outra pessoa não passa de um barco vazio. A raiva está dentro de mim.

 




Questionamentos

Você já se deu conta de que, na sua vida,

... Tudo fica sem gosto e quase você não avança, quando você está com raiva ou magoado com alguém, chateado com alguma coisa? 

... Você dispende uma enormidade de energia para realizar suas tarefas, quando você fica triste, preocupado ou ansioso? 

... Quando você está magoado, triste, angustiado, preocupado, chateado, tudo parece se arrastar, cobrando de você um gasto excessivo de energias para você retornar à sua normalidade?

“Ora bem, como é que eu sou?  Geralmente fugimos a essa pergunta, mas, se tivéssemos que responder a ela, provavelmente não seríamos capazes de dar uma resposta satisfatória. Diríamos talvez meia dúzia de coisas vagas, misturando autoelogios disfarçados com o reconhecimento de algum defeito inofensivo. Nada de sólido e realmente veraz. Porque a verdade é que nos desconhecemos. Tanto é assim que, diante de algo objetivo, como por exemplo a gravação de nossa voz, uma caricatura que nos fazem e até uma fotografia que nos apanhou desprevenidos, surpreendemo-nos. Esse sou eu?”[2]

 

Somos seres de relacionamento

Bela teoria, que impulsiona jornais e muitas obras literárias. No entanto, vivemos, na maioria das vezes, em choques como placas tectônicas, as quais, ao se encontrarem, produzem nada mais que destruições. Tais choques geram terremotos e provocam tsunamis. Há, no entanto, outras modalidades de impactos, como, por exemplo, o atrito, que nos faz caminhar, que permite o carro controlar seu movimento. Nas páginas da história, lê-se que nossos ancestrais produziam o fogo, através do atrito de duas superfícies.

No nosso dia-a-dia, o impacto primeiro acontece dentro de cada um de nós e, a partir daí, eu esparzo suas consequências para o entorno, estendo-me para o mundo. E nele vai a minha visão que edifica o ‘meu mundo’, no qual eu me movo, insiro-me e interajo com o mundo. Pode ser uma bolha, uma montanha, uma planície, um continente ou uma ilha. Um mar ou um pântano. O certo é que o que eu construo em mim salta para dentro da vida.

Eis a realidade da história do monge, da nossa história acima.

A espiritualidade não é um anacoluto existencial. Ela está integrada ao que somos. Daí que é fundamental, mesmo imperioso, estabelecer um relacionamento comigo mesmo.

O próprio Deus, ser absoluto, que poderia ser solidão suprema, Ele se nos revelou, fazendo-se inteligível como relação trinitária: Pai, Filho e Espírito.[3]

Pessoa humana, somos, fundamentalmente, seres de relacionamento. Mesmo se nos isolarmos numa ilha ou nos refugiarmos no deserto, não deixaremos de nos relacionar. Tentar fechar-se beira fenômenos patológicos.

A espiritualidade, compreensão e significado da vida, que deve conjugar, harmônica e equilibradamente, o corpo, a psicologia, a experiência de Deus e o compromisso na história, firma-se na solidez do encontro.

E para que haja este relacionamento saudável, com sensatez, impõe-se o autoconhecimento. Não é por acaso que o segundo maior mandamento nos diz “amar ao próximo ‘COMO A SI MESMO’”. Amar é um ato transitivo, cuja amplitude de conceitos varre atenção, cuidado, consideração, respeito, ética, tolerância, etc.

Amar contempla espiritualidade e determina santidade.

Mas, qual é o ponto de partida?


O ponto de partida é de um ilustre ser ignoto de si mesmo:

Eis algumas perguntas, no nosso espelho, olho no olho,

cujas respostas nos expõem a nós próprios:

... Como eu me defino?

... Que tipo de pessoa eu sou?

... Eu sou uma boa pessoa?

... Qual o sentido de meu viver?

... Como eu cuido de mim?

     ... Da minha saúde?

     ... Do meu corpo?

... Eu me respeito? Em que situações?

... Como está a minha conexão com o mundo ao meu redor?

... Qual diferença eu causo no ambiente e nas pessoas que me circundam?

... Como eu posso viver a minha vida da melhor maneira possível?

... Sou uma espiritualidade consciente?

... Estou perseguindo uma santidade livre?

... Afinal, quem, de fato, sou eu?

Autogênese

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.[4]

 


Nós somos múltiplos em nossa unidade.

E devemos estabelecer uma interação com nossos elementos orquestrais. Na nossa caminhada, não há neutralidade e a configuração é de cada

um de nós. O dia não espera, a noite não dura nem mais um minuto.

O protagonismo da nossa vida nasce conosco, com cada um de nós, e dirige nossa jornada, nossa espiritualidade, durante todo o processo vital.

Os fundamentos de nossa humanidade personalizada confundem-se com nossos valores e nos dão o direcionamento da espiritualidade.

As dimensões que se alojam no meu interior projetam a finalidade de meus anseios e de meus procedimentos.

A trilha da realização da santidade está ligada diretamente às atitudes congruentes com o valor interior que cada pessoa alberga.

Santa Teresa de Jesus já dizia: “É desatino pensar que havemos de entrar no céu sem primeiro entrar em nós mesmos, a fim de conhecer e considerar nossa miséria.”

Sem a cognoscibilidade de meus valores torna-se impossível analisar sua dinâmica e sua conformidade com a finalidade que almejo.

Então, a santidade, que conceituo na minha mente, pode estar sendo incompatível com o meu ‘estar-no-mundo’.

 


Descoberta do EU Holístico

 

Uma profunda espiritualidade nos abre para o mundo, para os outros. Faz-nos perceber-nos habitantes do universo, com uma multidão de pessoas e não nos fecharmos na paranoia intimista do ‘meu eu’ ou na fixidez de meus medos e mitos.  

A vida espiritual encarna um processo de libertação do ego, do “euzinho querido”, dos seus temores, rancores, interesses, angústias e outros.

O dilema de Sófocles “decifra-me ou devoro-te” soa-nos também como um alerta: se tu não me decifrares, não há como crescer em consciência, não poderei evoluir e te devorarei, transformando-te em zumbi escravo, destruindo a tua humanidade.

Conhecer a si mesmo demanda coragem, determinação e, sobretudo, humildade. Imergir dentro de nosso oceano de medos e inquietações, descortinar qualidades e ver nosso lado escuro: nossas limitações, nossos medos, nosso lado desonesto, nosso viés hipócrita, nossa agressividade, nossa raiva, nossa inveja, nossa covardia, enfim tudo aquilo que o ser humano apresenta como características bem humanas.

O autoconhecimento é que vai nos fornecer condições de aprender a cuidar de nós mesmos.

Quem não se conhece será sempre refém de suas emoções, de suas desconhecidas crenças limitantes e de suas percepções distorcidas.

Seu auto desconhecimento será nada mais que seu cárcere. O salmista já nos dizia: “Sei que sou pecador, desde que nasci. Minha mãe me concebeu em pecado” (Sl 51,5)

Todos nós temos um lado sombrio, ninguém escapa. Ninguém é perfeito, ninguém é 100% “bonzinho”. Apenas os hipócritas pensam que o são e os ingênuos pensam que existe alguém assim.

A santidade não passa ao largo da nossa humanidade. É com ela e nela que nos descobrimos imagem de Deus, como afirma Guilherme de St. Thierry: “Conhece-te a ti mesmo, porque és minha imagem, e assim hás de conhecer a mim, de quem és a imagem. Em ti tu me encontrarás”[5].

Sim, conhecer-se é dolorido; muitos não querem se conhecer, outros temem e outros ainda odeiam até mesmo em falar de autoconhecimento.

Conhecer entende-se como apropriação do objeto, percepção clara, análise assertiva. Ao conhecer-me, eu me aproprio de mim, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto e prontifico-me a me determinar nos meus objetivos e escolhas, bem como a realizá-los, com tomada de consciência, em todo o processo.

Há um fato interessante que, ao iniciar um novo ano, muitas pessoas refazem, continuamente, os seus objetivos: ‘não realizei o ano passado, mas este ano eu me proponho a realizá-los’. Expõem uma porção de justificativas, as quais evidenciam, com certeza, pretextos de não prioridade ou a incoerência desses objetivos.

Donde provém esta incoerência?

Por que desistimos?

Por certo, há algo dentro de nós que está bloqueando este nosso querer, algo invisível, que transparece na ansiedade e na inquietude da busca sem jamais realizar. E, na maioria das vezes, mascaramos nossa desistência com a fantasiosa afirmação: “estou apenas protelando, mas não desistindo”.

Pode-se ainda questionar: se todos nós nascemos para uma vida feliz, e, se a santidade é disponível a todos, por que não somos felizes, por que não somos santos? Será que estamos fazendo do ser feliz, do ser santo um faz-de-contas ou uma quimera ou uma dependência extrínseca?

Antes de tudo, é importante nos perguntarmos a nós mesmos:

O que me está contagiando?

Com quê eu estou contagiando o outro, a minha família, os meus amigos, a minha comunidade?

A estrada do autoconhecimento é árdua, porém, necessária. É incômoda, mas tranquiliza.

Anselm Grün escreve[6]:

“Por um lado, o homem se conhece a partir da grandeza de Deus que nele se reflete. O homem é uma imagem de Deus. Esta visão do conhecimento de Deus nós a encontramos, sobretudo, em Orígenes e Ambrósio e, mais tarde, por influência destes dois, nos escritos monásticos da Idade Média, em Bernardo de Claraval (+1153) e Guilherme de St. Thierry (+1148):

Conhece-te a ti, porque és a minha imagem, e assim hás de conhecer a mim, de quem és a imagem. Em ti tu me encontrarás.

Mas, ao mesmo tempo, como diz Bernardo, o homem deve reconhecer que é uma imagem desfigurada de Deus:

Reconhece-te como imagem de Deus e envergonha-te por a teres recoberto com uma imagem estranha. Lembra-te de tua nobreza e envergonha-te de quanto decaíste! Não deixes de reconhecer tua beleza, para que mais ainda te angusties por tua fealdade.

 

Holismo


O valor é uma dimensão do ser e também dimensiona a fé.

O valor condiciona o nosso agir.

Porém, que valor é esse, que, muitas vezes, contraria minhas atitudes? Que eu digo que professo e minhas ações denunciam o contrário?

Que valor é esse que prende a minha liberdade de voar?

Minha determinação de ser santo é congruente com minha liberdade? É expressa em minhas atitudes do dia-a-dia? Ou há desconformidade entre minha conduta e o objetivo que digo acalantar?

Ora, a liberdade é a energia fecundante do ser. Ela é integrante da vida, mas seu exercício se plenifica ao colocar-nos em marcha, rumo aos nossos anseios de realização. E a primeira e fundamental coisa a fazer é libertá-la dentro de nós. Libertá-la de padrões bloqueadores, de conceitos paralisantes, de mios inocentes, de atitudes que nos geram posteriores remorsos, porque despidas de esperança.

Sêneca já nos exortava: “Queres saber em que consiste a liberdade? Em não temermos os homens nem os deuses; em não desejarmos nada que seja imoral ou excessivo; em termos o maior domínio sobre nós próprios: sermos donos de nós mesmos é um bem inestimável!”[7]

Sócrates acreditava que o homem livre é aquele que consegue dominar seus sentimentos, seus pensamentos, a si próprio, sendo a escravidão o domínio das paixões. A concretização da liberdade é o autodomínio. É dele a célebre frase: “Conhece-te a ti mesmo”.

Dentro de nós, há uma multidão de assessores – deuses -, que tentam assumir o comando de nossas vidas.

Que tal buscarmos conhecê-los, chamando-os pelos seus nomes e identificando seus objetivos, suas manhas, suas arruaças, suas manipulações, tentando empanar dons e qualidades, que Deus nos deu, fazendo de nós, nossos palhaços e nossos inimigos?

Conhecer padrões limitantes e o ciclo de frustração, que, muitas vezes, nos abatem, somente é possível com um mergulho não apenas dentro de si, mas no fulcro e na sua raiz para lograr construir uma relação profunda e consciente.

 

Como exercitar o autoconhecimento

 

Mas tu, Senhor, fizeste-me voltar a mim mesmo, eu que havia virado as costas a mim porque não me queria ver, e me puseste face a face comigo mesmo para que eu visse a minha fealdade e minhas deformidades, visse como estou cheio de sujeiras e de manchas e de úlceras. E eu vi e espantei-me, e não soube para onde fugir de mim mesmo.[8]

 

O conhecimento de si mesmo é base de construção para o nascimento de um novo homem com Deus.

No século IV, o monge Evágrio Pôntico fazia a seguinte exortação: “Se queres chegar ao conhecimento de Deus, procura antes conhecer-te a ti mesmo.”[9]

Nascemos seres completos, porém inacabados, em vista da responsabilidade de trabalharmos a nossa própria realização, rumo ao que decidirmos seguir. E, se não decidirmos com clareza e objetividade, qualquer rumo serve.

Nesta empreitada, é necessário ficar claro que, contudo, a plena realização, a perfeição, em meio a nossas limitações e contingências, é uma impossibilidade ontológica. Nossa finitude não nos permite ser perfeitos, porém, dá-nos a possibilidade de, em nos conhecendo, fazermos os reajustes de nosso holismo existencial, em vista do foco que estabelecemos. A insaciabilidade, que aponta sempre para uma realização plena, a insatisfação que busca sempre melhorar é que nos vislumbra o Valor Absoluto, o caminhar para Deus, a sede do eterno. Espiritualidade que nos leva à santidade.

Não é sensato viver como o peixe que não se dá conta da água que o cerca. Nem tampouco cultivar uma espiritualidade ingênua, que paralisa a energia do caminhar e mascara nosso joio.

Em nossa contemporaneidade, quando se exalçam os padrões do hiper modernismo, com algumas bandeiras que nos empolgam, a santidade tem suas raízes na Verticalidade e dela se esparze na fraternidade: ser fraterno, sim, mas por Jesus Cristo, pois nada foi e é feito sem Ele. Uma fraternidade apenas horizontal, capenga do mastro que une o céu à terra, destrói-se, sem atingir os umbrais da eternidade. Outrossim, para nós cristãos terá como centro sempre Jesus Cristo.

A tecnologia, que nos desobriga de uma porção de atividades, deveria ensejar mais disponibilidade de tempo para atividades familiares e interiorização de nossa axiologia de vida.

É nesse ‘imbroglio’ social, cultural, religioso, que a humanidade navega. E nós, cristãos, católicos precisamos nos encontrar para consolidar nossos valores e reafirmar nossas crenças, sobretudo, num momento histórico de ‘comunhão’ com todos os nossos irmãos – humanos como nós – de todos os continentes, de todas as raças e de todas as crenças.

A santidade não é uma teoria, nem se adequa às vicissitudes de conceitos sabotadores e/ou paralisantes, nem é excludente. Existem várias trilhas para chegarmos ao Caminho da santidade, que é o seguimento de Jesus Cristo e todas elas passam pelo ‘descobrir’ o ser humano que somos. Pois, é esta a oferta que oferecemos a Deus e sobre a qual descem as inspirações do Espírito Santo.

O quê, portanto, estamos oferecendo a Deus?

Em geral, nunca nos ocupamos de nós, porque as nossas falhas, os nossos erros, no cotidiano de nossas vidas, quase sempre são atribuídos ao outro. São os outros, que erram, são os outros que nos fazem errar, são os outros os culpados. Eu até posso me enganar, mas a culpa prefiro jogar nas costas do outro. E de justificativas em justificativas, esquecemo-nos de buscar o ‘jeito’ de nos corrigirmos e avançarmos nas qualidades e dons que Deus nos outorgou.

Parecemos mais o lobo de La Fontaine do que um samaritano.

Santo Agostinho, a esse propósito, escreveu: “Os homens saem para fazer passeios, a fim de admirar o alto dos montes, o ruído incessante dos mares, o belo e ininterrupto curso dos rios, os majestosos movimentos dos astros. E, no entanto, passam ao largo de si mesmos. Não se arriscam na aventura de um passeio interior”.[10]

Aonde vamos chegar com tais procedimentos? Aonde estamos chegando, em nossas famílias, em nossas comunidades, em nossos trabalhos?

Estamos nos prendendo, muitas vezes, numa rede de emaranhados, construída por nós próprios e restringindo nossa liberdade de ser e crescer. Com isso, a mediocridade visita a nossa espiritualidade e, como tal, rotula o nosso ‘modus vivendi’. E entramos num fenômeno entrópico, refugiando-nos em miragens para ‘recalcar’ nossos medos e ocultar nossas máscaras. Porém, eu não posso fugir de mim, convivo comigo vinte e quatro horas por dia, até quando estou dormindo.

 E de tanto usar máscaras, a gente termina esquecendo quem está por baixo delas.

Por isso, como já mencionei acima, eu preciso ser livre, livre, inicialmente, de mim e, assim, esvaziar-me para encher-me de Deus.

A liberdade começa dentro de mim, quando eu identifico as minhas limitações, a fonte de minhas justificativas, a razão de minhas incoerências.

E nós levamos uma vantagem sobre os animais, somos dotados de razão, a qual nos dá um trunfo: a capacidade de perceber o que podemos e o que não podemos mudar. Dessa forma, ainda temos mais um bônus da razão: podemos mudar a nossa atitude em relação ao que não é possível mudar. Sêneca acredita que essa dupla liberdade é o que nos distingue como humanos e que ela pode ser alcançada com a prática filosófica.

Uma oração atribuída a Francisco de Assis diz: Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado. Resignação para aceitar o que não pode ser mudado. E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.

É preciso excomungar o medo, jamais se condenar, jamais se julgar vítima. A ansiedade e, às vezes, a angústia podem surgir, porém, aos poucos vão cedendo à aceitação.

Nenhuma espiritualidade pode nos sufocar ou nos amordaçar.

A santidade passa, inexoravelmente, pela humanidade.

Buscar a santidade e não querer reconciliar-nos com o humano, que somos, é uma farsa e, ao mesmo tempo, fonte de problemas psicológicos sérios, quiçá idiossincrasias psiquiátricas. O que eu não conheço em mim acumula-se e chega a transformar-se em dores, tristezas, mal-estares, doenças, remorsos.

A determinação de ver-se no espelho deve vir acompanhada de sinceridade e lealdade para consigo mesmo. De nada adianta fantasiar, mentir para si mesmo, pois, sendo mentirosos para conosco estamos também sendo mentirosos para Deus.

Identificar nossas inconsistências, nossos inimigos interiores, sem tentar maquiagens ou justificativas e, a partir daí, exercitar não a sua exclusão, nem o seu esquecimento, mas o controle com os dons e virtudes que temos dentro de nós. Pois, o que está sob minha dependência são minhas palavras, minhas ações, minhas ideias, meu papel, meus esforços, meus erros, meu comportamento, minhas atitudes. E é-me imperioso assumir o seu governo e sua administração.

Ao conhecer, portanto, nossas imperfeições, somos levados a uma postura de humildade, que nos vai possibilitar um redirecionamento de rumo, assumindo as rédeas da jornada.

O cientista Aldous Huxley (1894-1963) escreveu: “existe apenas um canto do universo que você pode ter a certeza de aperfeiçoar, que é você mesmo.”

O autoconhecimento é um processo continuado, que vai identificando dentro de nós coisas novas e coisas velhas, sem a pressa de querer, de imediato, vasculhar tudo. Imaginemos o que aconteceria com um vaso, se recebesse um turbilhão de água de uma só vez.

À medida que nos vamos aprofundando, mais humanos nos tornamos e assim podemos ofertar ao Pai nosso espírito vazio, com ardente sede de Deus, cuja chama nos ilumina e cujo amor nos envolve.

Nisto, construímos uma espiritualidade que nos move o agir.

É importante destacar:

Deus nos ama como somos, mas não nos deixa como estamos.

 

Alguns bloqueios


 

Ver-se como se é não parece ser tão fácil a uma cultura do parecer, do culpabilizar, do julgar, do isentar-se de defeitos e culpas.

O concreto, muitas vezes, nos sufoca: por que isso acontece...comigo?

A resposta não pode ser dada, sem antes eu me fazer algum questionamento, no qual eu seja o sujeito e o objeto.

A sinceridade desse momento impõe-se, acima de tudo, numa postura de humildade, ou seja, de ver-se e aceitar-se para começar a ser o que, deveras, se quer ser, mudando padrões, quebrando tabus, e mesmo, até agitando nossa inércia, se for necessário para despertamos o foco de nossos objetivos.

Cada pessoa vive experiências e sensações distintas. Não há receitas prontas, nem modelagens fixas.

Por que muitos querem ser felizes e poucos o são?

Por que muitos querem ser santos e uma pequena porção o consegue?

Certa vez, alguém me questionou: por que Deus dá pouco para muitos e muito para poucos?

Ora, Deus sempre atende às nossas necessidades de crescer e de frutificar os nossos dons: a seiva vitalizante nunca falta. Nós é que muitas vezes criamos impedimentos, quando não, nos fazemos nossos próprios inimigos. E buscamos culpar o alheio.

Alguns impedimentos e bloqueios:

 

1. Autossabotagem

Pessoas que põem em dúvida sua capacidade de ter êxito em seus objetivos, em seus sonhos, em sua vida.

A santidade é para os padres e bispos, para pessoas que abandonam tudo para se dedicar à oração. Para mim é algo muito difícil, não tenho cacife para chegar lá. Talvez um dia eu possa até iniciar uma tentativa.

A autoimagem está presa a uma redoma que me açoita valores e esmaga dons.

 

2. Projeção

Está mais presente do que a gente imagina. Alguns sentimentos, atitudes que reprovamos no outro, podem se tratar de uma rejeição de mim mesmo: como não os identifico em mim, vejo-os no outro e incomodam-me. Assim, o fato de tratarmos esta pessoa com hostilidade, apesar das nossas justificativas, demonstra que quem está cometendo hostilidade somos nós mesmos.

 

3. Negação

Diante de uma situação, de um comportamento meu ou um fato acontecido comigo, recuso-me a aceitá-lo: o fofoqueiro – eu não gosto de fofocas, mas vou apenas lhe falar porque confio em você.

O psicólogo Carl Alasko, Ph.D., comentando este mecanismo, diz: “a realidade sempre vence. E quando ela vencer, o próximo passo no processo é culpar, o que desloca a responsabilidade para outra pessoa ou coisa.”[11]

 

 

 

4. Repressão

Pensamentos e sentimentos, que sinto serem pecaminosos, procuro reprimi-los, porque para a santidade é preciso rejeitá-los.

5. Racionalização

Diante de certos fracassos e perdas, que impactam objetivos e sonhos, eu uso falsas alegações racionais, como se fossem boas razões para acomodar a angústia do conflito. Assim, num fracasso em prova de concurso, que eu queria tanto, eu digo ‘foi até bom, pois, eu não estava mesmo afim deste emprego’. Com isso, tento transformar este fracasso em algo neutro e justificável, de tal modo que eu não me sinta mal.

Outra maneira de racionalização é culpar o outro, por exemplo, tomar o lugar de alguém numa fila e culpar o outro por não estar displicente, desatento, isentando-se de qualquer culpa.

 

6. Formação reativa

Há inversão de sentimentos, diante de um objeto de desejo. Por exemplo, se tenho apreço ou amor por algo ou alguém, e, sabendo que esse sentimento não é correto, não o admito e passo a emoções opostas extremas, fazendo-me de vítima, de injustiçado.

 

7. Expiação

O indivíduo, sentindo-se incapaz de lidar com o sentimento de culpa de seu erro, quer pagar o preço, imediatamente. Ou seja, precisa ‘expiar’ ou projetar em alguém já pré-determinado essa angústia.

 

8. Deslocamento

Diante de uma ofensa, uma reprimenda, uma mágoa, você permanece calado, mas, depois, precisa encontrar algo ou alguém para descarregar sua raiva, seu mal-estar.

Além desses mecanismos, ainda podemos laborar em outras situações, como:

a. Dissonâncias cognitivas

Quando há uma contradição entre meus pensamentos e sentimentos e minha prática diária.

 

 

 


b. Distorções cognitivas

Maneira destorcida de interpretar certas situações e fatos do dia-a-dia.

As distorções cognitivas são um esforço para nos convencer de algo que não é, realmente, verdade. E nos fazem sentirmo-nos mal conosco, mal-estar psicológico e emocional intensos.

Exemplos: ‘As pessoas olham para mim com desprezo’, ‘Não presto para nada’, ‘Quando falei para o padre que estava tentando ser santo, ele me deu um sorriso irônico, achando que eu sou incapaz’.

Conhecer os mecanismos, que nos molestam e nos camuflam, ajuda bastante no exercício do autoconhecimento e nos predispõe a ver com mais firmeza os percalços que nos estão dificultando o seguimento de Jesus Cristo.

Além disso, há pessoas dominadas por imunidade cognitiva, que não conseguem admitir mudanças em seus padrões mentais.

É necessário compreender que a santidade é uma jornada e nunca se aloja numa zona de conforto, nem se isola numa ilha. Abre-se para sempre novos propósitos, prepara-se para novos riscos, expande seus horizontes, tem consciência dos erros que comete, os quais impulsionam o crescimento da fé, na humildade de servo de Deus.

Li, em algum lugar, o seguinte monólogo:

Eu quis e não consegui.

Eu tentei e não deu certo.

Eu mudei de caminho e de nada adiantou.

Foi, então, que cheguei à conclusão de que o problema estava em mim: eram as minhas escolhas erradas.

Isso pode até assustar, mas permanecer parado será bem mais perigoso.

 

 

A oração: instrumento de autoconhecimento

 

“Por que dormis? Levantai-vos, orai, para não cairdes em tentação.”[12]

 

Clemente de Alexandria escreveu:

“Parece, pois, que o mais importante de todos os conhecimentos é o conhecimento de si próprio; pois, quando alguém se conhece a si próprio, ele há de chegar ao conhecimento de Deus.”[13]

Ao afirmar Jesus: “Quando orares, não sejas como os hipócritas... ao contrário, entra no teu quarto[14], Ele orienta para uma oração pessoal, com um aspecto também analítico. Um olhar a discernir os contraditórios, que se digladiam dentro de mim, as sombras e as luzes, os dons e os defeitos, o que me faz crescer e caminhar para uma vida santa e o que me turva a mente e endurece o meu coração.

Anselmo Grün escreve:

A oração impele-nos ao autoconhecimento porque se não conhecermos nossos pensamentos e impulsos mais íntimos, nós não podemos concentrar-nos para rezar. Sem vigilância, nós somos constantemente perturbados por distrações na oração.

Mas também vice-versa: as distrações que continuamente nos aparecem na oração constituem um bom meio para nos conhecermos a nós mesmos. I. Hausherr, um dos maiores conhecedores do monarquismo antigo, acha que as distrações na oração possuem para o autoconhecimento a mesma função que os sonhos:

As distrações são muito valiosas, por causa das pistas que elas nos fornecem. São uma espécie de sonho acordado sobre aquilo com que nos ocupamos.[15]

As distrações ocorrem por pensamentos intrusivos, que nos chegam sem aviso e nos invadem a mente. Não adianta lutar contra eles, nem tentar expulsá-los, mas aprender como dissuadi-los de ficar conosco.

E continua:

“O autoconhecimento não é apenas uma condição para a oração, mas também o contrário: a oração é uma ajuda para o homem se conhecer a si mesmo.

Não existe coisa alguma que esquadrinhe o coração mais profundamente do que a oração. Quando oramos, nós nos colocamos na presença de Deus e somos esquadrinhados por Ele até o mais íntimo de nós. Tudo torna-se manifesto.[16]

Percebendo minhas limitações, a oração me possibilita adentrar no autoconhecimento espiritual, onde agora estabeleço um diálogo de mim com Deus sobre mim para identificar as raízes das desordens expressas em minhas atitudes e da tipagem de meus pensamentos e sentimentos.

Se, nessa varredura, eu não me despojar das minhas dissimulações, posto-me também mentiroso diante de Deus, iludindo-me e tentando enganar a Deus.

No ‘meu eu’, é que me encontro, verdadeiramente, com Deus e construo uma piedade não intimista, nem romântica, nem egoísta.

A perícope de Marcos do cego Bartimeu mostra que precisamos ir ao encontro de Deus. Jesus passou por Bartimeu, não parou para falar com ele, mas, depois ao ouvi-lo clamar por Si, parou e mandou chamá-lo. E, à sua súplica “Domine, ut videam” [17], Jesus diz-lhe: “Vai, a tua fé te salvou”.

Nós precisamos lançar fora nossas capas e sair ao encontro de Deus. E a oração é esse encontro amoroso e misericordioso de nossas fragilidades com a força das graças de Deus. É a nossa humanidade que se encontra com a Divindade.

E, nessa navegação, eu me vejo no barco da humanidade, portanto, orante e convivente com todos.

Assim, permaneço atento às palavras do Mestre:

"Como podes dizer a teu irmão: Deixa-me, irmão, tirar de teu olho o argueiro, quando tu não vês a trave no teu olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e depois enxergarás para tirar o argueiro do olho de teu irmão."[18]

A oração ensina-me o poder e a força do perdão.

Por ela, aprendo a agradecer tanto os acontecimentos bons como os ruins, os que agradam e os que desagradam e perquiro o seu sentido.

A oração, no entanto, não é um recurso terapêutico, nem uma técnica, mas união com Deus, cuja presença nos analisa e nos cura. União dialogal e humilde.

Anselmo Grün faz esta exortação:

Mas, sem ascese, a oração permanece palavreado vazio e inconsequente. Assim diz a Philokalia:

Nunca esqueças que a oração por si só não é perfeita, mas precisa estar unida a todas as virtudes, que são como os órgãos da alma que constituem nosso organismo interior. Só quando alcançam um certo grau de desenvolvimento é que estes conseguem viver no espírito. Na medida em que os adquires, mais perfeita se torna também a tua oração. Sem eles a oração não produz fruto.[19]

A oração nos ajuda a distinguir o que provém do Espírito e o que lhe é contrário. E nos aponta o tempo e o modo de fazer uma poda para nos despir de um coração embrutecido por ódio, egoísmo, autossuficiência, inveja, e que nos tornam vítimas de nossa presunção.

A oração, à semelhança do ar puro, que dá energia aos pulmões, vitaliza a alma. É o alento da vida e o sopro da alma.

Para Tomás de Aquino “a oração é necessária não para que Deus conheça as nossas necessidades, mas para que nós fiquemos conhecendo a necessidade que temos de recorrer a Deus, para receber oportunamente os socorros da salvação.”

A oração não dispensa nossa responsabilidade de agir.

 

Autoconhecimento e alteridade

 


A psicóloga americana Joyce Diane Brothers, falecida em 2013, escreveu: “o autoconceito do indivíduo é o centro da sua personalidade. Ele afeta todos os aspectos do comportamento humano: a habilidade de aprender, a capacidade de crescer e de mudar. Uma autoimagem positiva e forte é a melhor preparação possível para o sucesso na vida.

Trago à nossa consideração duas ilustrações:

Estamos no trânsito e alguém, à minha frente, faz uma barbeiragem, demora a sair quando o sinal verde abre ou vai devagar. Fico nervoso e vocifero palavrões para esta referida pessoa. Em quase um reflexo, exibo comportamento selvagem e de desrespeito a mim próprio, pois, noutras circunstâncias eu também cometi barbeiragens e, com certeza, não gostei se alguém me humilhou e me xingou em público. Aliás, quem nunca as cometeu alguma vez? Esta exibição contraria minhas convicções de ‘empatia’, de fraternidade e  diz muito de minha paciência e respeito ao próximo.

Ainda no trânsito, alguém vindo de uma via secundária, sinaliza pra entrar e eu, de propósito, avanço para não dar espaço para o carro entrar. Não me vem à mente que esta situação já se passou comigo e com certeza, vai se repetir, nem tampouco penso que pode ser um caso de urgência.

Esses dois singelos momentos poderiam ter outro desfecho, se eu tivesse conhecimento de minha humanidade, que está também no outro. A dignidade, que postulo para mim, é a mesma do outro. Pois eu sou o outro do outro.

E aqui encrava-se, mais uma vez, o mandamento do amor: “amar ao próximo como a si mesmo”. Se o outro é o meu próximo, eu sou o próximo do outro.

Nossa espiritualidade reflete o conhecimento e o amor que temos por nós. Uma espiritualidade intimista está mais para uma prisão do que para a liberdade de amar.

Quanta piedade inútil, quando se limita à igreja, ao invés de levar a igreja para dentro de si, para o mundo, para as pessoas de nossa família, do nosso entorno.

Lembro aqui um caso ocorrido em minha infância. Na cidade, havia um moço muito católico, sua casa era centro de catequese e de celebrações eucarísticas, inclusive algumas presididas pelo senhor bispo. Gozava de grande prestígio na comunidade e na igreja. Certo dia, fomos surpreendidos por uma notícia cruel: ele havia assassinado um cliente de seu comércio por causa de uma dívida insignificante. Duas famílias destruídas pelo descontrole de uma pessoa que cultivava uma espiritualidade, aparentemente, consolidada. Sem fazer qualquer julgamento, o não controle de suas emoções e sentimentos fez crescer-lhe a impulsividade, como uma bola de neve, e o gatilho disparou.

Nossas emoções, é consenso, irrompem antes que o racional dê as caras. Daí que a criança, ainda sem nenhuma noção de limites, experimenta as alegrias de um aconchego, como manifesta intensamente o desconforto, a ‘raiva’, em situações que lhe desagradam e incomodam. E é, no convívio familiar, que ela vai iniciando as atitudes coerentes, mesmo sem saber, nem conhecer o porquê.

As emoções, mais tarde, nos surpreendem e, quanto mais violentas, mais nos falam de desordens, de falta de controle, de domínio, de demasiada importância que lhe atribuímos. Sem elas, não podemos viver, no entanto, há como surpreendê-las também, pelo exercício frequente e ordenado de comandos. Pensar que, sem nenhum esforço, é possível controlá-las é pueril, assim como tomar decisões, no auge de qualquer emoção, é temerário. Emoções incontroláveis agigantam-se cada vez mais, escravizam-nos e, segundo Cassiano, são um sinal de que os vícios ainda possuem fortes e viçosas raízes dentro de nós[20].

Quando tomo consciência de minha humanidade, quando me descubro humano e, portanto, um ser de limitações, posso, então, compreender o drama e a contingência humana e chamar, conscientemente, os outros de irmãos, como fazia Francisco de Assis.

Só é possível ver as chagas do outro, quando se olha para dentro de si mesmo, reconhecendo as limitações e identificando o local das feridas.”[21]

 

O depoimento de homens e mulheres santos

 

“Para conhecer a Igreja é preciso olhar para os santos”

 

Como vimos expondo, a santidade passa por nossa humanidade, pois, é com ela que a construímos, na abertura para Deus e sob a inspiração do Espírito Santo.

É preciso passar do ‘dever’ ser santo para o ‘ser’ santo, de fato. O autoconhecimento aponta-nos o caminho da humildade e nos orienta uma ascese cristã.

Ele tem se constituído uma maneira de os santos tocarem Deus, cada um com os seus talentos, com o ‘seu jeito’ de seguir Jesus Cristo.

“Conhecer-se a si mesmo é uma necessidade e um dever do qual ninguém pode subtrair-se. O homem tem necessidade de saber quem é. Não pode viver se não descobre que sentido tem sua vida. Arrisca-se a ser infeliz se não reconhecer sua dignidade”.[22]

O salmo 143, no versículo 3, leva-nos, extasiados, a nos prostrar diante de nosso Criador e a postar esta maravilhosa, humilde e agradecida pergunta:

Que é o homem, Senhor, para cuidardes dele? Que é o filho do homem para que vos ocupeis dele?

Primícias de nossa abordagem, invocamos a pessoa de Maria, que canta a sua humildade reconhecida ante o Senhor, que nela fez maravilhas e, por isso, exulta o seu espírito.

Santo Agostinho: “Conhece-te, aceita-te, supera-te. Com isso, ele nos ensina que quanto mais nos conhecemos, tanto mais conhecemos Aquele que nos criou e que é a Luz do mundo.

Mas Tu me chamaste, clamaste por mim e Teu grito rompeu a minha surdez… “Fizeste-me entrar em mim mesmo… Para não olhar para dentro de mim, eu tinha me escondido. Mas Tu me arrancaste do meu esconderijo e me puseste diante de mim mesmo, a fim de que eu enxergasse o indigno que era, o quão deformado, manchado e sujo eu estava.”[23]

Santo Tomás de Aquino diz: “Quanto mais vou ao encontro de mim mesmo, mais descubro em mim um Outro que não sou eu e, no entanto, é o fundamento de meu existir.”

Francisco de Assis segue um processo lento no caminho para a santidade: a experiência da crueldade da guerra – as perguntas em Spoleto “Francisco, a quem é melhor servir, ao amo ou ao Criador?” e sua resposta “quem és tu, Senhor? O que queres que eu faça?’ O crucifixo de São Damião que lhe fala “Francisco vai e repara minha casa, que está em ruínas”. E, no recolhimento, meditava e encontrava-se, dialeticamente, consigo, revia seus valores, atualizava seus princípios de vida. E, diz seu biógrafo, Tomás de Celano, “quando parou de adorar a si mesmo, começou a compreender Deus” e abriu sua mente e seu coração a Deus.

Santa Teresa de Jesus, doutora e mestra na vida de oração, nos exorta:

“A causa de grandes males é o fato de não nos conhecermos devidamente, é distorcermos o conhecimento próprio[24].

Santa Teresinha do Menino Jesus: “Eu sou o que Deus pensa de mim.”[25]

 "Ó meu Deus, longe de me desencorajar à vista de minhas misérias, venho a vós com confiança…" Pois "eu sou pequena demais para subir a rude escada da perfeição."

Santa Teresinha mergulhou dentro de si e, em vendo sua imagem de Deus, entabulou diálogo com o Criador, deixando-se moldar por Ele, de tal modo a colocar-se em Suas mãos, na sua humildade.

Santa Teresa de Ávila sempre falava do conhecimento de si mesmo como meio de gerar mudança de vida e busca de santidade.

“A alma voltada para o próprio conhecimento deve voar algumas vezes, a fim de considerar a grandeza e a majestade do seu Deus. Ela constatará a sua baixeza mais do que olhando para si (...) A questão de nos conhecer é tão importante que eu gostaria que não houvesse nisso nenhuma negligência.”[26]

 “Jamais chegamos a nos conhecer totalmente se não procurarmos conhecer a Deus. Olhando a sua grandeza, percebemos a nossa baixeza; observando a sua pureza, vemos a nossa sujeira; considerando a sua humildade, constatamos como estamos longe de ser humildes”[27].

O autoconhecimento, escreve, “é como a água que está num vaso: não sendo iluminada, parece límpida; se o sol a atinge, logo vê que está cheia de poeira”.

Ainda: "O autoconhecimento é tão importante que, por mais próximo que você esteja do céu, eu gostaria que não descuidasse do cultivo de sua percepção de si mesmo."

Transcrevo dois trechos de São Bernardo de Claraval:

Tu não necessitas, homem, cruzar os mares, atravessar as nuvens, escalar os alpes. Eu te asseguro, o caminho não é assim tão longo: Basta que entres em ti mesmo para aí encontrar teu Deus.”

“Assim, não se conhecendo a si mesma, a criatura, cuja razão a distingue dos animais, começa a se confundir com eles, porque ignora sua própria glória que é inteiramente interior, cede à tentação da curiosidade e não se preocupa mais senão com a beleza exterior e sensível; ela se assemelha às outras criaturas porque não percebe que recebeu algo a mais que elas.”[28]

Para Mestre Eckhart, não há santidade sem buscar uma reconciliação da interioridade com a exterioridade.

Muitos parecem estar em perfeita paz, quando as coisas lhes correm à medida dos seus desejos; mal, porém, lhes não sucedem à vontade, logo se perturbam e se entristecem.[29]

Todavia, o medo e/ou a fuga, às vezes, nos fazem passar a vida inteira, sem nunca buscarmos viver o que realmente somos e o que deveras queremos.

 

 

 

 

 

Conclusão


Ao final desta palestra, gostaria de enfocar alguns aspectos importantes:

1. O autoconhecimento não se basta. É preciso aceitar-se, com humildade, para poder palmilhar a estrada de aperfeiçoar-se, cada dia.  Ele aumenta a compreensão de nós, do outro e do mundo e abre o espírito à liberdade e à autoestima. O autoconhecimento não é varinha de mágica e constitui apenas ponto de partida. Ele pode também enclausurar a pessoa nos seus vícios e nos seus erros, a depender dos seus valores e princípios;

2. O autoconhecimento pode nos constranger:

Em carta a um jovem, o monge Nilo escreve:

“Antes de tudo, conhece-te a ti mesmo. Pois, não existe nada mais difícil do que conhecer-se a si mesmo, nada mais trabalhoso, nada que exija maior esforço. Mas quando chegares a conhecer-te a ti mesmo, também poderás conhecer a Deus.”[30]

Anselmo Grün transcreve, em seu livro, este belo e impactante trecho:

Enquanto a compreensão permanece na cabeça, tua meditação se dirige para o genérico. O coração, pelo contrário, atinge o particular, o que se refere a ti próprio. Sem qualquer rodeio nem desculpa, ele dirige tudo para ti pela via mais eficaz, a que te atinge mais profundamente. Experimentas diretamente teus próprios erros e fraquezas, assim como as luzes ou sombras das coisas.[31]

Por isso, ele deve ser acompanhado por alguém que tenha condições de orientar e aconselhar.

3. O autoconhecimento favorece a construção da liberdade interior e da maturidade humana, estimula a capacidade de discernimento e fortalece a resiliência, promove uma aproximação mais íntima com Deus e mais comprometida com as criaturas. Com isto, possibilita-nos rever a articulação de nossas convicções, que davam sentido a todo compromisso e modelavam a nossa realidade.

4. O processo de autoconhecimento muda a forma como uma pessoa interage com o mundo e com as outras pessoas, abrindo a possibilidade para conhecer e aprender novas coisas. Ajuda a aprender a utilizar nossos erros e a trabalhar nossos fracassos, a rever nossas tentativas e a redefinir estratégias diante de nossos obstáculos.

5. A espiritualidade é como o sol que dá vida, sentido e cor a tudo. ilumina nossas trevas e clareia nossas sombras.

6. A santidade é o chamado de Deus a cada um de nós. É um convite à luta para o retorno ao Paraíso. Diz-nos Paulo:  "Porque a Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas, e discerne os pensamentos e intenções do coração."[32]

A busca de uma conexão consigo mesmo e, com algo maior do que nós, traz sentimento de paz interna, gratidão, aceitação, contentamento, completude e serenidade.

Enfim, O autoconhecimento, de fato, nunca se consome, nunca termina, pois até a morte ainda estaremos em busca de responder tantas perguntas sobre nós ou de conhecer o que até então desconhecemos.

Assim, diz São João Paulo II: “Fazer-se santo é uma dura conquista e supõe uma dedicação e um esforço que, no fundo, duram toda a vida.”

O autoconhecimento, nos desaliena, nos dá autoconsciência e nos dirige a um encontro de amor. Encoraja-nos a nos desintoxicar dos males que nos acorrentam.

A santidade é com o que você é e não com o que você parece.

 “Fostes Vós que plasmastes as entranhas de meu corpo, Vós me tecestes no seio de minha mãe. Sede bendito por me haverdes feito de modo tão maravilhoso! Pelas vossas obras tão extraordinárias, conheceis até o fundo a minha alma...” (Sl 138, 13)

Sim, vale a pena cultivar o jardim da fé.

Sim, valem a pena a serenidade, a paz.

Sim, vale a pena ser santo.

E que não aconteça, na hora de nossa morte, o que diz Sêneca: “somos piores ao morrer do que ao nascer. E nisso o defeito é nosso, não da natureza”.[33]

 

 


Em minha nudez

Me encontrei.

Em cada perda

Ganhei.

Em cada decepção

Aprendi.

Em cada dor

Amadureci.

Em cada prisão

Me fortaleci.

Em cada emoção

Adquiri vigor.

Em minha nudez

Me encontrei.

Em cada não

Encontrei um sim.

Em cada lágrima

Contemplei um sorriso.

Em muitos sorrisos

Vi mágoas,

Enxerguei desespero,

Vi traição,

Enxerguei hipocrisia.


Em minha nudez

Me encontrei.

No passado

Me compreendi.

No futuro

Me sonhei.

No presente

Me vivo.

Em minha nudez

Deus permanece

Dentro de mim.

E eu O encontrei

E jamais O deixarei.

 

 

 

Referências bibliográficas

 

1. CASTRO, Luiz A., Deixar que o outro seja, ed. Paulinas, 1986

2. GRÜN, Anselm, Oração e Autoconhecimento, Ed. Vozes, 2004

3. NOVAIS, Germano, de O Espelho e a Autoestima, Ed. Loyola, 1994

4. Bíblia Católica

5. DE ARAUJO, Pedro Bezerra, Teu trabalho, tua vida, tua cara, ed. João Scortecci, 1995

6. LELOUP, J.Y, ed. Verus, 2002

7. CURY, Augusto, Superando o Cárcere da Emoção, ed. Academia da inteligência, 8ª e., 2000

8. BEATTIE, Geoff, Toda Mudança Começa em Você, ed. Fundamento, 2014

9. DE ARAUJO, Pedro Bezerra, Autoestima em Lucas, monografia de término de curso de Teologia, Fortaleza, ITEP,  2003.

 

Sugestões:







[1] - cfe. Ef 1,4.

[2] - Malvar Fonseca, J, Conhecer-se, edit. Quadrante, 5ª ed. 2018

[3] - Cf. MENDONÇA, Jacy de Souza. O Curso de Filosofia do Direito do Professor Armando Câmara. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999. p. 150.

[4] - Saramago, Ensaio sobre a cegueira.

[5] - Patrologia Latina 180, 494; cf. J.M. Déchanet, La connaîssance  de soi d’après Guillaume de Saint-Thierry, Supplément à la Vie
       Spirituelle
, 1938.

[6] - GRÜN, Anselm, Oração e Autoconhecimento, Edit. Vozes, Petrópolis-RJ, 2004, pags. 14-15.

[7] - Cartas a Lucílio, 75, 18.

[8] - Santo Agostinho, Confissões.

[9] - GRÜN, Anselmo, Idem, pag.13.

[10] - https://www.radiorainhadapaz.com.br/noticias/noticia/id:15799;tarde-te-amei-de-santo-agostinho-uma-das-mais-arrebatadoras-oracoes-de-todos-os-tempos.html

[11] - Carl Alasko, Assuma o controle de sua vida, ed. Lafonte, 2011.

[12] - Mt 26,47; Mc 14, 43; Lc 22,46; Jo 18,1

[13] - apud GRÜN, Anselm, Idem, pag.13

[14] - Mt 6, 5-6.

[15] - GRÜN, Anselm, Idem, pag.22.

[16] - GRÜN, Anselm, Idem, pag. 23.

[17] - Mc 10, 51-52.

[18] - Lc, 6, 42.

[19] - GRÜN, Anselm, Idem, pag. 67-68.

[20] - Cassiano, apud Anselm Grün, Oração e Autoconhecimento, pag.

[21] - OLIVEIRA, Marcelo J.S., São Francisco vive no Canindé: a peregrinação e seus enigmas, edit. Opção, 2005.

[22] - CENCINI, Amadeo, Amarás o Senhor teu Deus, ed. Paulinas, pag 8.

[23] - https://www.radiorainhadapaz.com.br/noticias/noticia/id:15799;tarde-te-amei-de-santo-agostinho-uma-das-mais-arrebatadoras-oracoes-de-todos-os-tempos.html.

[24] - Santa Teresa de Jesus, Castelo Interior.

[25] - Santa Teresinha do Menino Jesus, História de uma alma.

[26] - https://www.sites.google.com/site/factosdavidareal/literatura/santa-teresa-de-vila/a-humildade

[27] - Santa Teresa de Jesus, Libro das Moradas ou Castelo Interior.

[28] - São Bernardo de Claraval, Tratado sobre o amor de Deus, edit. Paulus, 2015.

[29] - Thomas Kempis, Imitação de Cristo.

[30] - Patrologia Grega,  apud GRÜN, Anselmo, Oração e autoconhecimento, pag.14.

[31] - cfe. I. Hausherr apud GRÜN, Idem, pag. 35

[32] - Hb 4, 12.

[33] - Cartas a Lucílio, 22,15




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