Padre Cícero é santo, sim senhor!

 


Barros Alves

Há algum tempo entrevistei Dom Fernando Panico, bispo da diocese do Crato, sobre o processo de reabilitação do Padre Cícero Romão Batista. Indaguei-lhe se conhecia algum santo que não passara pelas formalidades da canonização. Resposta lacônica: “Desconheço”. Não acredito, digo eu. Um bispo inteligente e culto como Dom Panico não desconhece a história da Igreja. Por agora, quando se tenta remediar uma injustiça inominável cometida contra o Padre Cícero, pela própria Igreja (lembrai-vos do precedente de Santa Joana d’Arc!), e se dá o primeiro passo para a longa caminhada que leva à glória dos altares, urge lembrar que vários nomes hoje inscritos no hagiológio católico-romano não necessitaram do processo canonizatório para merecer a veneração do povo.


Pra começo de conversa, apóstolos e mártires, os primeiros santos, não foram submetidos à burocracia vaticana. São Jorge é perfeito exemplo de santo não canonizado, mas cultuado pelas populações do Brasil, de Portugal, da Espanha, da Lituânia e da Inglaterra, sendo padroeiro desta nação conforme Bula do Papa Bento XIV; e também padroeiro da cidade de Gênova, na Itália. São Ludgero, fundador da cidade de Münster, na Alemanha, morreu a 29 de março de 809 “e logo depois foi venerado como santo”. Ao morrer Santa Catarina da Suécia (séc. XIV), “uma multidão imensa a proclamou santa antes mesmo das autoridades eclesiásticas...”


Santa Matilde nasceu em 895 e casou aos 14 anos com Henrique, duque da Saxônia, por força de negócios de Estado. Depois de brilhar pela inteligência e bondade na Corte, abandonou tudo e recolheu-se a um convento. Foi uma “mulher de admirável piedade, exemplo e ideal de rainha cristã”, e sem necessidade do veredito papal “desde os escritos da época ela vem sendo chamada de santa”.


São Venceslau, príncipe nascido na Boêmia em 907, adotou o ideal cristão em tenra idade. A inveja invadiu o coração do próprio irmão, Boleslau, que assassinou o jovem rei para assumir o trono. Antes Venceslau teve oportunidade de matar o irmão, mas não o fez “porque a mão de um servo de Deus não deve manchar-se com um fratricídio”. Ao morrer, surgiu uma imensa devoção popular a Venceslau “graças aos prodígios que se operavam em seu túmulo de mártir, logo venerado como santo, o primeiro entre os povos eslavos”.


De igual modo, Santa Gertrudes, morta em 17 de novembro de 1301, “embora nunca tenha sido oficialmente canonizada, desde 1738 sua festa litúrgica é celebrada em toda a Igreja”. Ela é a padroeira das Índias Ocidentais.


Ora, é certo que para a hierarquia da Igreja faz-se necessário o processo de canonização, precedido do de beatificação. Formalidade que o povo dispensa.


Na prática Meu Padim Ciço já está em todos os lares dos sertões nordestinos, nos oratórios, nos altares, nas lapelas, nos rosários. Melhor ainda, no imaginário místico do povo ele está ao lado do próprio Cristo, como se fosse uma das três pessoas da Santíssima Trindade, como cantou em sua santa ingenuidade o poeta popular.


Heresia? Que o digam os doutores da Igreja; o que não faz nenhuma diferença para o homem sofrido das caatingas, o qual não dá a menor atenção para filigranas teológicas. O que interessa a ele são os milagres que Meu Padim tem feito no cotidiano de sua existência: é a bicheira do animal que Meu Padim curou; é o parto da mulher que não fez pré-natal por omissão do governo, mas na hora da natividade dá tudo certo com a bênção de Meu Padim; é a doença do filho que se cura com a bênção dele; é o pão frugal de cada dia na mesa rústica, que não falta porque Meu Padim ajuda; é a chuva que vem depois de longa estiagem, porque se São José não ouve, Meu Padim Ciço tem as “oiça” bem atentas, posto que mais do que ninguém ele vivenciou as angústias e tormentas do homem do sertão.


Por final, vale dizer que os santos prescindem de devoção e mais ainda da burocracia vaticana, porque são naturalmente santos, quer se queira, quer não. O povo faz seus santos, até porque, como dizia com certa ironia o teólogo e filósofo católico Romano Guardini, “a Igreja é a cruz na qual Cristo foi crucificado, e como não se pode separar o Cristo da sua cruz, a gente tem de viver num estado de permanente insatisfação com a Igreja”.

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